Casas de afectos
É inesperada a caixilharia vermelha que Luís Pinto Coelho escolheu para cobrir a montra d’A Paródia. Dá um ar asiático à fachada, quando o interior não podia ser mais português. Espalhadas pelas paredes da primeira sala, convivem capas da última revista lançada por Rafael Bordalo Pinheiro, que dá nome ao espaço, e dezenas de caricaturas de outra publicação satírica do início do século XX, Varões Assinalados. Quando Luís Pinto Coelho deixa o Procópio, passa a receber parte do elenco conspirativo na sua loja de antiguidades. Chamavam-lhe “o bar da PIDE”, ainda antes de ser bar, por ser “muito frequentado por elementos da polícia política que eram secretamente a favor da revolução”, conta Filipa Carlos, actual proprietária. A inauguração oficial d’A Paródia acontecia dois dias depois do 25 de Abril.
Hoje, continua a ser uma “capelinha modesta”, como a descreveu Cardoso Pires em 1997, com as suas dez mesinhas redondas comprimidas em duas pequenas salas. Sobre o balcão com tampo de mármore pousa ainda o cinzeiro que o escritor monopolizava quando ali passava. “Só podia ser usado por ele porque no final da noite gostava de saber quantos cigarros tinha fumado. E não eram poucos.” Em volta, as paredes forram-se de caixas de fósforos, que os clientes mais antigos tinham a tradição de usar como mealheiro. “Muitos deles guardavam moedas para quando lhes faltassem trocos”, conta Filipa. Quando a noite está calma, Filipa gosta de ir de mesa em mesa, dando voz aos pequenos pormenores que tecem a mística do espaço. O “génio” que foi Luís Pinto Coelho, as peripécias ali vividas, a história dos cocktails clássicos que preenchem grande parte da carta.
“Adoro este sítio. É um daqueles lugares em que instantaneamente te sentes em casa”, diz Malcom, enquanto percorre o olhar pela sala. Há dois anos, a “família portuguesa” trouxe-o à Paródia pela primeira vez. “Fiquei maravilhado”, recorda o inglês, actualmente a viver em Espanha. Desde então, sempre que vem a Portugal, “quatro ou cinco vezes por ano”, faz questão de voltar. A mesa de quatro — pai e filho britânicos, uma filipina e uma portuguesa — vai desfilando elogios ao espaço. Não tem televisão nem música alta que impeça a fruição da conversa, mantém a decoração e a qualidade dos cocktails. Desde os anos 1980 que Isobel, 58 anos, acaba sempre por pedir um Alexander. Nunca saiu defraudada. Para a portuguesa, o espaço faz parte da identidade do bairro que deixou há 20 anos. “É o meu Campo de Ourique. Sem A Paródia não tinha piada nenhuma.”
São casas de afectos. O apego que se sente à frente e atrás do balcão será característica transversal aos sete dos mais antigos espaços nocturnos de Lisboa que visitaremos. Para Filipa Carlos, é parte do segredo para a longevidade. “Nós tentamos arranjar formas para que o espírito continue, mas é o carinho que as pessoas têm pelo espaço que faz com ele se perpetue”, afirma. Para muitos clientes “não é só um bar”, é “um bocadinho uma casa”. Alguns conheceram-se ali e ali começaram a namorar, ficaram noivos, contaram ao marido que iam ser pais. Até que o filho, anos mais tarde, repete o ciclo. Por vezes, as histórias de amor começam numa mesa e acabam atrás do balcão. Como a de Filipa Carlos e Pedro Baptista, que se conheceram n’A Paródia. “Passado alguns meses começámos a namorar e muito pouco tempo depois comecei a trabalhar aqui também.” Já lá vão doze anos. Hoje, a filha mais velha do casal, de quatro anos, já vai pedindo para ir ao bar. “No outro dia, passei por cá com ela às 21h e ela ouviu a campainha, foi à porta receber uns senhores estrangeiros, levou-os até à mesa e perguntou-lhes se queriam uma água”, ri-se Filipa.