Curiosamente, foi uma altura em que “trabalhou muito bem”. “Melhor do que agora”, quando o Cais do Sodré está mais em voga do que nunca. “São números, é gente na rua, mas eu vivo com as que estão dentro do estabelecimento.” A moda afugentou parte da clientela, gente dos teatros, do cinema, dos jornais. Quando havia karaoke, ainda não tinham entrado e já pediam a José Carlos para “cantar o Corazón Partío”, ri-se. Entretanto, um vizinho começou a queixar-se do barulho e o karaoke acabou. Hoje a noite ainda está calma. É quase 1h quando ZeTatas pega na guitarra para um concerto de covers, de Green Day a Bob Marley. As quatro mesas estão ocupadas, junto ao balcão um grupo bebe um shot ao som de Three Little Birds. Antes do concerto, Carla M., a Poeta Maldita, levanta-se de tempos a tempos para escolher a música. “A primeira vez que fui DJ foi aqui”, conta. Hoje é a familiaridade com o pessoal da casa que lhe dá acesso aos comandos da banda sonora. Começou a vir com mais frequência há cerca de três anos, pouco depois de Elvira liderar as hostes atrás do balcão. O carisma, a personalidade, a forma como a ucraniana trata os clientes são hoje cartão principal de visita do espaço. “O Americano é a Elvira”, diz convicta. E como se o destino quisesse corroborar a afirmação, um rapaz faz uma entrada triunfante, chamando por ela. “Elviiiiiraa.”
Quase em frente, o British Bar navega entre o rock de Aerosmith ou Nothing But Thieves e, quando os ânimos de um grupo britânico se agitam mais, os Of Monsters and Men sobem às colunas e ao ecrã da TV para “acalmar”. Se o Americano quase passa despercebido, entalado entre o Cais Pimenta Rosa e uma Telepizza, o British brilha de neóns e montras rasgadas para a rotunda do Cais do Sodré. A explicação, conta-se, vem do tempo em que aqui ancoravam tripulações de navios mercantes. O British “era para os marinheiros” e, por isso, as largas janelas permitiam “saber o que estavam a fazer lá dentro”. O Americano, mais escuro e recatado, era para os comandantes “virem com uma namorada ou fazer negócios”, conta José Carlos. “Não se conseguia ver quem estava cá dentro”. Ainda hoje é difícil.
Foi em 2014 que os pais de José Carlos e de Luís Manuel Bergana, os actuais proprietários do British, os deixaram “com o menino nas mãos”. O histórico bar, inaugurado em 1919, estava a ficar “muito decadente, a precisar de obras”. Fizeram uma renovação quase completa, do espaço à equipa, para “puxar o lustro à casa”. Mas sem lhe mudarem o ADN. “Nunca pensei em fazê-lo, nem posso, nem quero e, por último, os clientes matavam-me.” São “muito exigentes” — “isto é a casa deles”, diz. Há quem ainda se lembre de em miúdo ir com o avô à Rua do Arsenal buscar bacalhau e parar ali para o avô tomar uma ginger beer, que ainda hoje é feita na casa por José Francisco, funcionário ali há 45 anos. “Isto é património da cidade de Lisboa”, defende José Carlos. Foi para tentar salvaguardá-lo que candidatou os dois espaços ao programa municipal Lojas Com História. O British integrou a lista na primeira edição, o Americano entrou agora. “Tinha de tentar protegê-los antes que chegasse aqui um fundo e comprasse isto tudo. Esquecem-se que há aqui famílias e que isto tem história. E a história não se apaga com dinheiro.”