Antes de chegarmos, António Vilela preparou-nos. "É um sítio para escutarmos os ruídos do deserto, ouvir o silêncio, ver as estrelas. É uma noite espiritual." Disse-o através do rádio CB, meio a sério, meio a brincar. Depois de serões fora de horas, desafiava o grupo a não ferir aquele silêncio tão apertado em si mesmo e enorme para quem o escuta. Mas foi possível dormir algumas horas calmas: depois do gaspacho e de algum falatório, toda a gente serenou. E ouviu-se o silêncio.
Bendita tranquilidade que nos havia de preparar para a adrenalina que nos faltava: as tais "pistas" nas dunas de Oum-Jrane. Tinham-nos posto com as expectativas elevadas a culpa é do Ti Carvalho! -, chegámos a desconfiar que não seria assim tão divertido, mas foi. Tomámos sempre comprimidos para o enjoo, pelo sim, pelo não, e tudo correu bem.
Para a malta do todo-o-terreno, a palavra "dunas" representa todo um ritual. As máquinas alinham-se, os condutores ganham confiança e lá vão eles, com a mudança e a energia certa. Um simples descuido na velocidade, na "garra", e o carro fica atascado. Nós fizemos aquilo tudo descontraidamente, não tivemos de andar de pá em punho a libertar rodas da areia. Mas é disto que eles gostam. Sobe mais uma, desce outra. Às vezes, parece que estamos a voar sobre a areia, um manto de pó fino cor-de-laranja levemente ondulado. E nós lá dentro, no jipe 15, que, diga-se, não ficou nem uma vez atascado. Fez um brilharete. No fim do dia, já não era o XXL, mas o "Papa-dunas".
Carla Luz, gestora comercial de 40 anos, também era uma estreante. Admite que teve medo. Não vale a pena dizer que é para todos, que não é cansativo, que não há alturas em que achámos que iríamos ceder ao calor. Transpirámos, bebemos água. Tudo detalhes para quem gosta destes desafios, mas que podem ser um suplício para quem aprecia o conforto numa viagem.
Foi de tal forma extenuante que, quando chegámos ao hotel, em Zagora, atirou-se toda a gente (ou quase) para a piscina. Jantámos na esplanada e, até à meia-noite, o calor insistiu em desassossegar-nos. Não ouvimos, porém, um único queixume durante os 11 dias. Todos aguentaram a temperatura, o montar e desmontar tenda, as casas de banho de Marrocos nas quais, por vezes, a meio do percurso é preciso parar e que são muito pouco convidativas. Nada disto teve a importância que supusemos que teria, porque houve sempre um deslumbramento - partilhado -por aquela paisagem que nos esmagava ao longo de estradas sem fim. Ainda em Zagora, mas já pela manhã, acompanhámos alguns dos participantes à oficina de Mohamed "Gordito" (nesta zona há muitas oficinas que reparam os carros que vêm do deserto): recebeu-os com abraços e palmadas nas costas. Aproveitámos também para espreitar o mercado: vimos um pequeno rato entre os vegetais e várias cabeças e patas de vaca ensanguentadas no chão. Não é para o nosso estômago, mas, apesar disso, reconhecemos que havia fruta com bom aspecto.
Pôr-do-sol com cuba livre
Mas que importa o mercado e o rato quando nessa noite iríamos acampar nas dunas do deserto, no Erg Chegaga? À nossa espera estavam várias tendas nómadas - khaima -, erguidas com tecido castanho feito com pêlo de cabra ou de camelo. Uma delas, na qual nos descalçámos antes de entrar, estava preparada para jantarmos o típico tagine (guisado de frango, borrego ou vaca, que pode variar consoante a região, mas que é sempre servido num prato de terracota com tampa cónica).
Havia também umas casas de banho improvisadas -para usar um eufemismo, se formos exigentes -e quem quisesse podia passar-se por água, que era pouca.