Para começar, o Algarve servir-lhe-á de "treino". Aos primeiros passos em Sagres ("pelo tempo mais ameno e, claro, pela simbologia"), "verdadeiramente nervoso", aprendeu logo que lhe faltava preparação física e que a mochila era demasiado pesada. Pela serra do Caldeirão, o caminhante surpreende-se com a "descaracterização". Também com a "desconfiança inicial" das pessoas. Um homem solitário, de mochila às costas, a andar por aí. Já ninguém anda por andar. "Percebi que isso acontecia por todo o lado": "De sítio para sítio, há muita desconfiança. Há zonas onde as pessoas são muito desconfiadas (pode ter havido um assalto ou uma burla), mas há zonas onde não. Desces uns quilómetros e és bem recebido, depende muito do que se passou lá". "Uma pessoa passa lá de mochila às costas, num determinado dia, se calhar noutro é diferente". Depois, vai-se sendo reconhecido e bem recebido com um "Desculpe, não sabíamos quem você era".
O que é certo é que não faltava quem se admirasse com este caminhante. Tomavam-no ora por vagabundo, ora contrabandista ou peregrino a Fátima ora por pior. E também não faltava quem se assustasse: "Não esperava ser recebido com medo em determinadas zonas. Numa aldeia do Vimioso até chamaram a GNR". Mas, passadas as reticências iniciais e aberto caminho às conversas, Nuno Ferreira foi-se surpreendendo tanto com a hospitalidade de muitos como com maravilhas várias, a beleza paisagística, a gastronomia ou artes tradicionais quase em extinção. E com a luta de alguns "resistentes", dedicados a projectos que mantém vivos a memória colectiva, seja a gaita-de-foles em Miranda do Douro ou o cante alentejano, o trabalho do Ecomuseu do Barroso para registar documentalmente a região e sua cultura, as chegas de bois de Faifa, Montemuro, ou a arte da pesca da xávega na Praia da Torreira.
Andar surpreendido
"Há sítios de uma beleza natural fantástica". "Uma pessoa até fica surpreendida". "Como é que eu, aos 40 e tal anos não conhecia a Serra de São Macário, no concelho de São Pedro do Sul, e a aldeia de Covas do Monte e as suas quase 3000 cabras ao lado da Aldeia da Pena", "ou a cascata fantástica da Frecha da Mizarela, na serra da Freita". Agora, não lhe faltam na ponta da língua sítios assim, pessoas, momentos, aldeias abandonadas e aldeolas em que se luta pela sobrevivência, tabernas e cafés, serras e planícies. De tudo guarda memórias únicas e resume-as em "Portugal a Pé" - o livro. Pelas suas páginas, passa tudo o que viu, "cascatas perdidas na serra de São Mamede", "lameiros entre as águas bravias e geladas de rios transmontanos", "searas ondulantes e douradas na planície alentejana", "garranos à solta entre a névoa da Serra Amarela".
São imagens que preenchem a obra com um Portugal que, por vezes, parece em "perigo de extinção", um país que foi descobrindo na sua caminhada, quase sempre solitária: "Fazia trilhos e mais trilhos que em quase não encontrava ninguém". Também, sem GPS e sendo que "os mapas não servem para tudo", daria por si não só sozinho como perdido e até a correr perigos - no Marão, teve mesmo que ser resgatado por bombeiros. "Teimava em não usar GPS. Até ao centro do país tinha a caminhada controlada. No Norte é mais complicado, há mais desvios, perdi-me muita vez. Andava com uma fúria muito grande a descer as serras todas e espetei-me ao comprido".
Dos regressos
Mas dos dias de andarilho, o que fica sobretudo são as pessoas desse "Portugal profundo". "Fiquei com um grande apego às pessoas que vivem no interior, que se mantêm lá, com projectos associativos, com pequenos comércios, que tentam". E um grande "apego" aos guardiães da memória. "Deste livro que vai sair, já muita gente faleceu", diz Ferreira. "O senhor de Mértola que tomava conta da torre do relógio já não está lá", "já me ligaram de uma taberna de Pias a dizer que o senhor faleceu", o mesmo em relação ao senhor que tinha a campanha da pesca da xávega Torreira. O livro serve também para preservar os ensinamentos desta gente, alguns deles revisitados meses depois de dar a caminhada por terminada.