- O meu avô, Joe Simpson, que Deus o tenha, trabalhou na construção do Titanic.
Peter Rogers, 65 anos, barba e cabelo da cor da neve, olhos protuberantes e mortiços, segura nas mãos um livro antigo sobre a história do transatlântico, olhando com uma certa indiferença o formigueiro humano que se move, como um tumulto das ondas, pelos corredores de St. George, mercado a funcionar desde 1896 e hoje, dia em que o visito, cheio de cor, de vida, de cheiros. O sol banha de luz os telhados envidraçados e lança madeixas sobre homens e mulheres que fitam preguiçosamente, enquanto tomam o pequeno-almoço, a banda que agora toca uma música alusiva ao Titanic.
- Diz-se tanta coisa, inclusive que o acidente pode ter sido provocado por um acto de sabotagem. A verdade, quer se queira, quer não, é que o Titanic ficará para sempre associado à história de Belfast e continuará a atrair, ano após ano, um grande número de visitantes. E sabe o que é curioso para a sua história?
Uma jovem bela, com um vestido azul e um olhar dócil, recorta-se de pé no centro do mercado, como se estivesse vestida para embarcar no Titanic. Eu olho o olhar de frialdade de Peter Rogers, que cofia a barba desalinhada, e aguardo a resposta:
- Foi construído por irlandeses e afundado por ingleses. Não deixe de escrever o que lhe digo.
A manhã desponta repleta de luminosidade e eu dirijo-me para a May Street, depois para a Oxford Street, àquela hora mergulhada no silêncio, lanço um olhar furtivo ao edifício neo-clássico que abriga as Cortes Reais da Justiça, bombardeado pelo IRA em 1990, e de imediato desaguo na renovada zona ribeirinha, detendo-me por instantes a observar um barco ancorado no cais que oferece à contemplação, numa pequena janela lateral, uma miniatura do Titanic.
As águas do rio Lagan, prateadas pelo sol, correm suavemente e, no horizonte, sobre o fundo azul do céu, destacam-se as gruas amarelas da Harland and Wolff, uma espécie de farol, visível de diferentes pontos da cidade, que guia os turistas com menos sentido de orientação. São as famosas Sansão e Golias, com 106 e 96 metros de altura, respectivamente, um reflexo de um passado glorioso que teima em perpetuar-se no tempo, dois braços tão fortes que eram capazes de erguer até 840 toneladas e de vital importância para a construção de barcos de grande porte - mas não o Titanic, já que apenas foram elevadas aos céus em 1970.
Atravesso a Queen's Bridge, com os seus candeeiros ornamentados, apreciando languidamente a primeira importante contribuição do arquitecto inglês do século XIX, Charles Lanyon, para a renovação da paisagem urbana de Belfast, caminho junto ao rio ouvindo o marulho das águas, até me embrenhar no Quarteirão Titanic, um projecto de regeneração orçado em mil milhões de libras cujo plano passa por transformar, em 20 anos, esta área das docas durante tanto tempo votada ao abandono.
Dois viandantes fotografam a escultura do Titanic, legitimamente na sua posição vertical, e meia dúzia de crianças brinca com os skates nos passeios asseados, enquanto uma jovem, sentada na esplanada do café, desenha com um olhar sonhador que por vezes se perde no infinito. De repente, dobrada a esquina dos novos prédios de apartamentos, avista-se ao fundo o que parece ser a proa de um navio, reluzindo à luz do sol que sobe e lança os seus raios resplandecentes. Apresso o passo, ao longo da Queen's Road, como se de repente fosse abanado por um frémito de vida e, incapaz de resistir ao magnetismo que aquela luz prateada que fulgura nos meus olhos exerce sobre mim, chego em poucos minutos ao local onde se concentra uma multidão que observa, sem conseguir desprender o olhar, aquela beleza harmoniosa.