De repente, uma estranha calma, um sossego inesperado atravessa-se no caminho. Vemos Djavan, nome de cantor, voz de músico, numa praça de calçada portuguesa. As pedras pretas são o Negro, as brancas o Solimões, explica. Vieram como lastro nos navios que transportavam os materiais para o arrebatador Teatro Amazonas, de cúpula multicor, inaugurado em 1896. Caboclo, Djavan diz ter um "trabalho privilegiado" - de domingo a domingo não arreda pé do Largo de São Sebastião, onde vende mapas há já 12 anos. Passa os dias num frente-a-frente com a sala de espectáculos, berço do Amazonas Film Festival ("Pessoas famosas? Aqui? O vendedor de picolé. Esses é que são as estrelas"), e ainda tem vista para a Igreja de São Sebastião e para o Bar do Armando.
Com 40 anos, Ana Cláudia passou "a vida inteira convivendo no bar". É filha de Armando Soares, português, natural de Arganil, distrito de Coimbra, que chegou a Manaus trazido por um tio em 1953, com cerca de 17 anos. Foi na cidade que conheceu Maria de Lourdes, também portuguesa,(de Tabuaço, Viseu), também trazida por um tio. Casaram. Depois de ter trabalhado em bares e até no mercado, a morte do irmão de Lourdes ditou uma mudança de rumo. Assumiu a mercearia do cunhado, mas quando viu que começava a perder clientes para os supermercados, Armando não esteve com meias medidas. Como, paralelamente, já vendia cervejas, assumiu o outro lado do negócio e depressa transformou a mercearia num bar.
"Na década de 1970", conta Ana Cláudia, "tudo girava em torno do centro de Manaus", onde se situavam as principais faculdades e o tribunal. Conclusão: "Às 9h o bar já estava cheio de gente." Era frequentado por advogados, juízes, jornalistas, médicos, artistas, mas também por "bêbedos e vagabundos". Todos encontravam ali um "espaço de liberdade" em tempos de ditadura. "No Bar do Armando falavam do que quisessem, era um espaço democrático", narra a filha, dando como exemplo os manifestantes que, durante uma manifestação, escaparam à polícia ao entrarem no bar. Não pediram asilo, mas certo é que a autoridade ficou do lado de fora.
A BICA
No Carnaval deste ano, a BICA não saiu para as ruas. O patrono estava internado desde Dezembro, não havia razões para comemorações. Não se repetiu o cenário de 2011, quando 40 mil pessoas se juntaram às comemoração da Banda Independente da Confraria do Armando, e Manaus ficou mais triste.
Foi o ambiente de liberdade que se vivia no bar que concebeu uma das bandas de Carnaval mais tradicionais de Manaus, especialmente dedicada ao samba-enredo.
Nos anos 1980 germinava a oposição política e, "por brincadeira", os frequentadores do bar, intelectuais da cidade, decidiram criar uma banda com músicas que satirizassem os factos políticos do ano. Em 1987, a banda saía para a rua pela primeira vez. "Todo o mundo achava muita graça, mas todo o mundo tinha medo de virar tema da ‘banda da BICA'", enfatiza Ana Cláudia. Senadores, deputados federais, governadores, juízes - quem não andasse na linha poderia inspirar quadras demolidoras, sempre assinadas por frequentadores do bar já falecidos para evitar repercussões. Uma vez, um desembargador bem que tentou parar a BICA. Sem sucesso: "Aquilo só fez com que a banda ficasse mais popular." Há livros sobre o fenómeno, CD com as "marchinhas". "Ganhou uma proporção que ninguém imaginava que iria tomar. Hoje fala-se que a banda deveria ser ‘tombada' pelo município", afiança, do outro lado do balcão, Roberto Carvalho, companheiro de Ana Cláudia. Isto é, reconhecida como património da cidade.