E já que se fala de facas e garfos, guardemos umas linhas para dizer algo da gastronomia auvergnat. Em terra de queijos, de vinhos à procura do seu espaço - como os da pequena região de St. Pourçain, nas planícies do Allier, no Norte - e famosa também pelas lentilhas, cultiva-se o gosto francês pela boa mesa. Que atinge o clímax na casa de campo de Jean-Marc Pourcher, chef que desistiu do seu buliçoso restaurante na cidade para passar a cozinhar, à vista, para pequenos grupos. É ele que nos oferece, no final de um repasto, a síntese perfeita desta passagem por Auvergne, num leite-creme a lembrar Portugal, em que a menta das pastilhas de Vichy explode na boca, como um vulcão. Bem fresco, no caso.
Património
Mil castelos?! E quantas igrejas?
Diz-se por cá que Auvergne é terra de mil castelos. Descontado o exagero, na verdade esta região francesa tem mais castelos que Portugal. Em ruínas alguns, como por terras lusas; classificados e transformados em museus outros, como por terras lusas. Há outros ainda que são privados, e habitados, o que já não acontece em Portugal. E assim resistem na paisagem estes símbolos de outros tempos, em que esta era terra de muitos senhores, cada qual com o seu povo espalhando casas em ruas estreitas, pelos montes em volta. Num território cheio de vales e pequenas elevações, adivinha-se qual o efeito desta organização social e urbana na paisagem.
Vê-se bem, este lado medieval de Auvergne, a leste de Clermont, a bordo de um Ford Mustang vermelho. Quem o conduz é Michel Treille, agente turístico cuja empresa se especializou na criação de roteiros que podem ser percorridos em carros antigos. Um luxo ao alcance apenas de alguns, mas que tem, garante-nos o orgulhoso empresário, o seu público. Gente que nutre grande paixão por estas máquinas, pelo prazer de ouvir os seus motores quebrar a monotonia das estradas secundárias, bem pavimentadas, onde raramente passa um carro.
É tudo nosso. Pena que a chuva, a chata, não nos deixe abrir o capot, que a ideia era poder abrir os olhos à imensidão da paisagem e levar com os cheiros da Auvergne campestre, a tal que se parece com a Toscana, pelas cores do casario, na cara.
Mas não vale pena o lamento. Que o castelo de Hauteribes, onde Michel nos leva e do qual ele próprio só ouvira falar, compensa o enfado da meteorologia. Lá dentro guarda-se e expõe-se uma das maiores colecções de mobiliário de França, incluindo peças que foram copiadas para o Louvre. E nas paredes, alguns originais de pinturas de personagens históricas como Luís XIV ou o cardeal Richelieu garantem realismo a este mergulho na história. Permitido porque o último dono do castelo, o marquês de Pierre, doou o edifício ao Estado, exigindo apenas que a colecção de mobiliário ali fosse mantida.
O visitante só tem que agradecer o gesto e aprender. Lembrar-se que a secretaire era uma mesinha cheia de pequenos espaços para guardar segredos (secret), própria de reis, rainhas, condes e marqueses. Que o povo, segredos, guardava-os, se quisesse, com o padre, em confissão. E não faltam por estas terras do centro de França de onde se lançaram as primeiras guerras santas e de onde parte o Caminho Francês para a outra grande peregrinação medieval, Santiago de Compostela, templos para lavarmos os nossos pecados.