O que espanta é que tantas igrejas tenham chegado aos nossos dias nas boas condições em que Auvergne as mostra aos turistas. Cinco templos românicos da região mereceram da UNESCO a classificação de Património da Humanidade. São eles Saint-Nectaire, Orcival, Saint Saturnin, Saint Austremoine (em Issoire) e Notre Dame-du-port, a esplendorosa construção em calcário, no centro de Clermont-Ferrand, em cuja cripta se venera uma imagem negra da Nossa Senhora da Boa Morte.
Deste quinteto maravilha, a Fugas teve oportunidade de ver ainda a igreja de Orcival. E de que forma! Subíamos a montanha sob uma chuva densa, a escurecer o céu, quando, como por milagre, as nuvens se abriram, por quinze minutos apenas, para que pudéssemos ver, pedra cinzenta brilhando a pleno sol nessa humidade, a vila medieval, adossada na montanha verdejante.
Tanto ou mais que o seu templo, a própria localidade, de tão bem preservada nas suas ruelas estreitas e casario de ar vetusto, é uma viagem no tempo, cuja passagem está bem vincada nas enormes portas da igreja, na madeira que resiste e no ferro trabalhado, no livro de cânticos guardado, atrás de grades, na misteriosa cave. Provas de que não são exagerados os elogios que os guias fazem ao património - religioso e não só - desta região.
Este recuo de séculos só o viríamos a experimentar nas ruas do centro histórico de Clermont, que preservam o desenho e alguns edifícios de outros tempos, e de novo em Charroux, no departamento de Allier, no Norte. Esta pequena vilazinha fica situada no extremo sul de um vale vinhateiro, onde se produz o DOC Saint Pourçain e é, para quem, como nós, a desconhecia, uma surpresa de arregalar os olhos. E já agora a boca, que o mais conhecido restaurante da localidade, La Ferme de São Sébastien, propiciou-nos uma das mais interessantes experiências gastronómicas desta passagem por Auvergne.
Tudo por causa da mostarda, uma planta que até já não se cultiva por aqui. Para além do património, há gente interessada em preservar tradições, como a da produção da pasta condimentar de sabor característico, que se faz em três pequenas fábricas. E o chef Valérie Saigne fez questão de a usar numa pequena entrada à base de maçapão que, se parece doce ao entrar na boca, logo nos agita o palato na textura e intensidade amarga da moutarde. A pedir um bom branco, como o que nos foi servido.
O restaurante fica nos limites de um povoado pequeno, algumas ruas apenas, onde é possível distinguir o que resta das suas duas muralhas circulares, a mais interior em volta da igreja românica. A segunda muralha defenderia um perímetro mais largo, terminando em várias portas - tantas quantos os pontos cardeais. Percorre-se isto em menos de uma hora, e custa a entender que aqui, onde vivem algumas centenas, já viveram três mil pessoas. Que aqui, onde a torre da catedral parece inacabada (ou destruída), houve quatro igrejas e duas paróquias.
Charroux está na linha que separava as línguas faladas no Norte de França, agrupadas sob a designação de Langue d'oil, e as línguas do sul, o Langue d'oc. Tem o seu próprio museu mas é, ela própria, museu vivo, com as suas lojas de artesanato e uma casa onde um coleccionador abre a porta aos turistas para que estes possam ver, e escutar, centenas de relógios de todas as maneiras, feitios e mecanismos, marcando, síncronos, o avançar do tempo. E reserva-nos uma última surpresa made in Portugal. A loja do Açúcar, de Paula Amorim, filha de vianenses que mata as saudades da língua dos pais brindando, com a Fugas, com um café. Antes de uma despedida cheia de emoção.