Inferno com amor
Vínhamos de uma visita relâmpago a Salvador, metrópole buliçosa, e desaguámos em Itaparica, uma ilha que parece, sonolenta, ter soçobrado perante a presença eterna do calor. E não há nada de errado com esta imagem: uma espreguiçadeira mergulhada no mar tépido, o rumor dos coqueiros a crepitar ao ritmo da brisa. Mas quando levantamos os olhos, depois da barreira de rocha e coral, parte dos Recifes das Pinaúnas, surge a silhueta de uma cidade. Podia ser Chicago ou Nova Iorque. Arranha-céus em vez de pelourinhos, baianas e fitas do Bonfim? O imprevisto desorganiza o arranjo de um dia, como já disse o escritor Rentes de Carvalho, mas há desarranjos que vêm por bem, porque ali está Salvador como o contraponto moderno a esta ilha dentro de uma ilha, a esta aldeia com vista de tropical ilustrado em que os burros nos entregam as roupas de cama e as iguanas nos pedem flores para petiscar.
Em pleno Club Med, pensa-se assim na viagem ao conhecido centro histórico de Salvador, o bairro do Pelourinho feito de casas de bonecas à portuguesa em torno da praça onde se açoitavam os escravos, temperado pelo cheiro do acarajé. As mulheres que só se vestem de baiana para fritar e vender esses pastéis de feijão e inevitável óleo de dendém nas praças policiadas, os turistas e a varanda onde se pode tirar uma fotografia com um Michael Jackson cartonado, tudo isto é Salvador e tudo isto está rodeado pelo Brasil. Pelas pessoas, pelo trânsito, pela dificuldade, pelos edifícios descarnados e que estão para lá da orla do bairro histórico classificado pela UNESCO. Mais junto ao mar, raparigas e rapazes namoram na Barra, berço do tropicalismo, ou saem à noite em Rio Vermelho, um bairro de esplanadas, cerveja, churrasco e “balada”. Lá em cima, na igreja basílica do senhor do Bonfim, devotos choram de braços abertos ajoelhados frente ao altar; por seu lado, os turistas fotografam tudo enquanto são enrolados nas coloridas fitas que há duas décadas se massificaram como uma das imagens da Bahia.
Essas fitas estão por todo o lado. Nos pulsos, mas também nos brindes e puxadores dos roupeiros dos hotéis — como no Club Med Itaparica —, nos espelhos dos carros, nos porta-chaves e, claro, não fosse Brasil e um Verão sem fim nesta zona perto do Equador, pendurados nos biquínis. É a lembrança que enfeita as grades das janelas e da cerca do santuário do Bonfim, onde a vista é ampla. Mas Itaparica está longe da cidade do Carnaval, da capoeira e do candomblé. Para Ricardo, naquele barco ruidoso cheio de brasilidade, Salvador, o centro espiritual do Brasil e a sua primeira cidade colonial, “é um inferno”. Bem enfatizado em cada sílaba, cada uma entregue ao trânsito, às multidões dos cerca de 2,8 milhões de habitantes, a que se juntam, em todo o estado, 11 milhões de turistas — dos quais só 558 mil são estrangeiros (números de 2011, do Turismo da Bahia). Mas é o seu inferno, a sua cidade natal. A ênfase no “inferrrrrno” tem, como no Samba da Benção, de Vinicius de Moraes, um pouco de amor na cadência. “Baiano orgulhoso, sempre. Adoro meu estado, minha cidade, não sairia daqui por nada. Baiano gosta de curtir a vida”, repete.