Aqui, na ilha onde em 1991 o New York Times encontrou “uma aldeia piscatória portuguesa a milhares de quilómetros de Portugal”, o Club Med instalou o seu resort com lagoa, coqueiral de 33 hectares e mais de 300 quartos baptizados com expressões ou locais em 1979. Para Ricardo, óculos embaciados do calor humano e atmosférico, nestes últimos anos a ilha e a vila homónima mudaram muito, não só pelos resorts, mas pelo dinheiro e complicações adjacentes que o turismo traz. Nos últimos anos, há mais gente, mais hotéis, diz. Mas a vila de Itaparica parece discordar de Ricardo e pôr-nos outra vez em 1991. Ou antes.
Por momentos deixamos de pensar global — ou seja, em Jorge Amado, talvez o baiano cujo apelido é mais adequado à forma como é venerado pelo seu estado — para pensar local. Esta é a terra de João Ubaldo Ribeiro, que gritou Viva o Povo Brasileiro!, que identificou O Sorriso do Lagarto, cujo humor a tratar as suas raízes em Itaparica é um dos seus traços mais reconhecidos. No centro há um mural com as suas capas, um café encimado pelos títulos de alguns dos seus livros, mas o bairro não terá mudado assim tanto desde essa visita dos gringos do Times — é o que nos dizem nas ruas, e o que nos dizem as ruas num dia pardacento, com apenas um punhado de pessoas à vista.
O mesmo acontece noutra investida pela ilha que nos acolheu. Já se sabe que o Brasil é um país de contrastes e que tanto há praias de folheto turístico quanto favelas, que há uma classe média em crescimento e ainda há muitos pés descalços. Baiacu é um pontinho nos mil quilómetros de costa e 56 ilhas desta Bahia onde muita da mistura do que hoje é o Brasil foi feita. É uma povoação piscatória a meio da costa norte da ilha e uma amostra que confunde.
Aqui, pesca-se de piroga e navega-se de smart phone. Casas feitas de taipa e adobe, velhos que adormecem nas poucas sombras, ruas despidas de gente pelo calor, estradas com crateras e casas que tentaram pôr maquilhagem no rosto mas que ainda estão tropicalmente despenteadas, à espera que o dinheiro venha tapar-lhe os segredos de tijolo e plástico. Junto ao mar, arranjam-se pitingas (peixes muito, muito pequenos), brinca-se com os cães e observam-se os forasteiros de pulseira no braço. Subimos a estrada e três miúdos brincam com os seus telemóveis tecnologicamente espertos. Mais acima, dois rapazes puxam de um portátil e de um netbook e empoleiram-se à soleira de uma dessas casas descuidadas a mexericar no teclado. Alguma coisa mudou, no individual. Pensando global, talvez não.
Tommy cerveja
Dias depois, com a ilha de Itaparica firmemente sob os pés e um Club Med que nos diz bom dia a cada passo na sua aldeia internacional em plena Bahia, o guia e professor João Carlos Guimarães explica-nos “o jeito brasileiro de ser”. Vamos a isto, porque se há uma verdade é que cada brasileiro orgulhoso tem a sua versão da história, o seu mito fundador do que é a “brasilidade”.
“Deus trabalhou seis dias e ao sétimo descansou”, começa João Carlos, 64 primaveras de histórias e alguns mistérios, pele morena curtida pelo sol e pelo desprezo pela ditadura que o fez emigrar quase 15 anos. Voltou e voltamos com ele ao deus das pequenas grandes coisas e seus planos para o Brasil. “Depois, ao ver seus resultados, ficou contente e quis comemorar. Espalhou os minerais mais preciosos, estendeu um tapete verde para cobri-los, criou um céu azul anil e fez o Brasil e a festa — e nós ainda não terminámos”, ri-se com o corpo todo. Outra verdade sobre os brasileiros: amam o seu país tanto quanto odeiam o que é feito dele. “Corrupção”, cospem as bocas de quem conversa.