Este é o ferry de sábado à noite: um barco que é uma festa, uma dança na brisa marítima morna entre amigos, famílias, vendedores e turistas com o volume no máximo que saem de Salvador da Bahia rumo à ilha de Itaparica. A multidão faz a sua própria canção — a interpretação baiana do que é ser brasileiro. “Aqui na Bahia é mais fácil morrer por mexer com a mulher dos outros do que com tráfico ou assalto”, diz Ricardo, 41 anos, tronco nu e copo cheio. “E mesmo assim, baiano é tão relaxado que às vezes até deixa passar.” E vai mais um golo de cerveja e mais um abraço de sorriso rasgado aos amigos.
O filho de Ricardo aparece e pendura-se-lhe numa perna, a mãe telefona-lhe, depois é a sogra ao telemóvel, a mulher está-lhe tatuada nas costas mas também sentada num banco a umas filas de distância. Vamos todos para Itaparica — Ricardo, a família, os jornalistas com estadia marcada no Club Med na ilha onde, lemos nos jornais e nas crónicas, muitos baianos sonham ter um cantinho só para si. Ricardo e os seus dois amigos, ainda mais acalorados e embebidos em cerveja gelada, são um pólo de histórias, certezas baianas e festa, em pé porque assim é mais fácil rir e refrescar junto a uma das saídas do ferry boat. Nos próximos fins-de-semana, este barco que sai a cada hora de Salvador ou de Itaparica ficará cada vez mais cheio, cada vez mais festivo, até transbordar a 31 de Dezembro e mais ainda na altura do Carnaval de Salvador, rival do carioca e “mais democrático” segundo os três amigos sem camiseta — porque aqui, camisola é camisa de dormir, e rimo-nos nas costumeiras trocas de galhardetes entre o português de Portugal e o português do Brasil, sem acordos ortográficos para nos servir de barreira polémica.
Todos a bordo, portanto, do barco que liga a capital do estado mais negro do Brasil a uma ilha que é uma das muitas versões do que é o paraíso no Brasil. Ricardo e os amigos reiteram o que o mundo já ouviu mil vezes, que o brasileiro “sabe viver”. Apanham o ferry vindos já do interior do estado da Bahia para vir a Itaparica no fim-de-semana, aproveitando os dias para comer e beber e ver as praias estreitas orladas por coqueiros e beijadas por um mar calmo e morno. De outra forma, ou vinham por terra, dando uma grande volta à Baía de Todos os Santos, ou apanhavam lanchas rápidas só para peões.
No Club Med de Itaparica, admite-se que a delonga de uma hora por mar mais transporte automóvel entre Salvador e a Village rodeada de condomínios e plantada sobre uma lagoa é um obstáculo (que, no caso da simbologia do Club Med, significa que este é umresort tridente – o número de braços do tridente equipara-se à tradicional classificação por estrelas). Mas uma vez lá, é “uma clínica de relaxamento”, diz Marcelo, um GO — o gentil organizador, que ajuda os GM, os gentis membros, e trabalha com os GE, os gentis empregados, numa comunidade onde também ele vive, rodeado de hóspedes com t-shirts com iconografia do clube que fincam o sentimento de pertença.
Um microuniverso com vista para Salvador de onde se sai com palavras-lema a rodopiar na cabeça — “energia”, “desinibição”, “humanização” —, onde se montam pequenos espectáculos todas as noites, se baloiça nos trampolins e trapézios, se anda a cavalo, se joga ténis, se come com os hóspedes — com os GM, perdão —, se dança com eles, se fica amigo deles. Quando os mais de 300 quartos deste resort estão lotados, esta é uma verdadeira aldeia, apenas cruzada pelos habitantes das ilhas pela praia (não há praias privadas no Brasil, e ainda bem), onde se pode comprar artesanato e saídas de praia sob os coqueiros e dançar com ou sem coreografia, com ou sem companhia trazida de casa, porque esta filosofia deresort é de que em cada GO há um amigo. Nem que seja temporário.