Fugas - Viagens

  • Sérgio Azenha
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Trinidad, a perolazinha cubana


O princípio do fim

Um coco-táxi rasga a calçada e três idosos, de cabelos grisalhos, sorriso instalado no rosto, sugerem uma avidez de conversa que, sem dificuldade, me convence a fazer-lhes companhia. A curta distância, uma velhinha, com a sua cara cheia de rugas e uma expressão dócil, fita-nos de quando em quando e, mais para diante, duas crianças erguem os seus tacos de beisebol com a improvisação que é uma marca da identidade, embora forçada, do povo cubano. Ainda mais para lá, dois carros, um amarelo e um azul, estacionados defronte das casas como se há muito integrassem a decoração urbana, fazem os meus companheiros sentirem-se jovens.

— Vasco Gonçalves?

É impressionante, num país fechado ao mundo a sete chaves, o elevado nível cultural das suas gentes. Falam-me de Angola, de política, de literatura, do passado, do presente e do futuro, lançando olhares não vá o Fidel tecê-las.

Património Mundial da UNESCO desde 1988, «Jóia de Arquitectura Colonial» para o ditador Fulgencio Batista em 1950 e «Monumento Histórico» para o próprio Fidel Castro desde 1965, Trinidad iniciou o seu declínio inexorável quando, na passagem do século XIX para o século XX, perdeu importância face ao aumento da produção de beterraba na Europa, o desenvolvimento do porto de Cienfuegos e a abolição da escravatura. Para agravar a situação, as duas guerras de independência debastaram de forma dramática as plantações de açúcar, um dos símbolos e fonte de riqueza durante a época do colonialismo espanhol, transportando Trinidad para um esquecimento e um adormecimento que somente a sua beleza arquitectónica foi capaz de despertar.

Se Cuba é a pérola das Caraíbas, Trinidad é a perolazinha de Cuba e, a despeito do abandono a que foi votada, permanece, talvez por isso, agora que as obras de restauro são uma realidade cada vez mais visível, como a cidade mais encantadora de um país tão difícil de compreender, mas, para todos os efeitos, uma urbe que vive ao ritmo de há cem anos. Só na parte velha, com as suas torres barrocas das velhas igrejas, existem mais de mil edifícios construídos entre os séculos XVIII e XIX, muitos deles, excepção feita a alguns à volta da Plaza Mayor, acolhendo museus. Um homem, montando um cavalo, de charuto na boca e chapéu de abas largas, cruza a praça depois de passar por um caleidoscópio de mil janelas e outras tantas cores, os cascos do animal martelando sobre as pedras gastas pelo tempo. Projectando-se no meio de tudo, embora modesta, pontifica a Igreja Paroquial da Santíssima Trinidad e, não muito distante, o Palácio Brunet que é, desde 1974, o Museu Romântico, com um conjunto de salas decoradas com móveis do século XIX. Em Trinidad, o turista pode sofrer do síndroma de Stendhal mas os olhares, percorrendo tranquilamente as artérias, não sofrem de qualquer ansiedade, pelo contrário, assimilam a estética urbanística como um convite a prosseguir, viajando por aqueles tons que olham como se o seduzissem, como uma poesia sem papel e sem tinta.

Pelo meio da penumbra, caminhando sem ver, às apalpadelas, mas feliz entre as trevas, chego à porta da casa que, supostamente, corresponde à direcção que me fora dada, na véspera, na Praia de Ancón. O silêncio, submisso perante a lua cheia, acompanha-me. Espero um minuto, talvez menos, até que surge o rosto, bem mais sorridente, da mulher que, por duas vezes, perturbara a minha solidão.

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