Fugas - Viagens

  • Diz-se que aqui, no país menos religioso do mundo, Deus é a natureza
    Diz-se que aqui, no país menos religioso do mundo, Deus é a natureza
  • Diz-se que aqui, no país menos religioso do mundo, Deus é a natureza
    Diz-se que aqui, no país menos religioso do mundo, Deus é a natureza
  • Na casa dos Heinvere, o termómetro avisa os 16 graus negativos que se fazem sentir lá fora, em noite de lua cheia
    Na casa dos Heinvere, o termómetro avisa os 16 graus negativos que se fazem sentir lá fora, em noite de lua cheia
  • Os milhares de canais de água foram os únicos lugares de paz durante os tempos de guerra e de ocupação da Estónia
    Os milhares de canais de água foram os únicos lugares de paz durante os tempos de guerra e de ocupação da Estónia
  • As casas na floresta são uma das opções de alojamento mais sui generis da Estónia
    As casas na floresta são uma das opções de alojamento mais sui generis da Estónia
  • Talin
    Talin

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Estónia: Este país é para estóicos

Visto de uma torre de cinco metros, é como se esta capa de terra inundada fosse dos monstros mais belos que pudessem existir, tão sumptuoso que não lhe podemos tocar. Nunca a paz fora tão longa como em Endla. Olhamos, que o silêncio assim o dita.

Matar ou desistir

Um pouco de urbe viria equilibrar-nos a noção de espaço, pelo que decidimos ir a Talin, a capital estónia, para desenhar o resto da viagem com calma e para uma passagem pelo KUMU, um dos maiores museus de arte moderna e contemporânea da Europa nórdica, que só pela arquitectura (assinada pelo finlandês Pekka Vapaavuori)vale a visita.

Na Estónia, mudar a rota radicalmente é uma decisão fácil, já que o país se faz em pouco mais de quatro horas, de lés-a-lés. À mesa do Kohvik Energia, um café-cantina ao estilo soviético no centro da cidade, Kai Raku deita os olhos ao mapa. “Andar à boleia é bastante comum para nós, sobretudo no Verão”, solta, já depois de comentar que, uma vez na Estónia, “é obrigatório ir a Narva”, a cidade de onde se avista a Rússia pelas muralhas de um castelo. Ponderamos, mesmo sabendo que nenhum caminho vai dar a Narva, como verificaremos a seguir.

Ânimo e um pedaço de cartão onde se lê Narva tão nitidamente quanto os reclames luminosos bastam. Aguardamos, que o silêncio assim o dita. Trinta minutos. Um Saab 900 bordeaux encosta no passeio húmido. Para quem aprecia clássicos, a Estónia é um stand de raridades ao ar livre. Desde os modelos da Lada, Skoda e Tatra até aos alemães Trabant, todos resistem estoicamente ao Inverno, alérgicos a garagens e abruptos no arranque. Salivamos na ânsia de experimentar os estofos daquele Saab, mas no momento em que fitamos o vidro embaciado, o arranque abrupto do motor confirma-se. Pela estrada fora. Uma hora, uma hora e meia, duas horas, 0 graus no termómetro matutino e a cabeça desiste antes que o corpo fale. Boleias sim, mas apenas no Verão. Fica o lembrete.

Palmilhamos a estrada no sentido inverso, já com os dedos enregelados e desobedientes. Um trago de vodka ia bem, mas o charmoso eléctrico azul e branco convida a seguir até Balti Jaam, a estação de comboios que partilha os portões com o mercado russo de Talin, ponto magnético da cidade, quer pela experiência mundana, quer pelos achados do orbe da segunda mão. Entre casacos de pele por 20 cêntimos, objectos de culto da ex-URSS, posters de Estaline e câmaras fotográficas Zenit e Praktica, o único pensamento é o de não perder o foco. Cruzamos comerciantes inflamados de cigarros e chapéus ushanka presos aos queixos. Ao fundo, avistamos Natascha (nome ficcionado mas irresistível), vendedora de pirukad, uma espécie de pastéis de carne, peixe ou legumes para matar fomes rápidas. Para Narva, o letreiro dos comboios anuncia partida tardia, noite adentro. Mesmo não havendo Lada nem Trabant para alugar, a opção é regressar à estrada num automóvel da geração XXI, a 30 euros por dia.

A 1/E20 é de espírito calmo – a velocidade máxima permitida são os 90 quilómetros por hora –, o que nos incute a vontade do desvio ao acaso. Estamos a dois quilómetros de Tapa, centro nevrálgico da antiga linha ferroviária soviética e palco de treinos do exército estoniano, quando duas placas nos atiram contra a parede: a esquerda leva-nos a Tapa; a direita conduz-nos a Loobu. Traduzindo, as hipóteses são “matar” ou “desistir”. Opção feita, já no hall do Tapa Muuseum, a directora ri a bandeiras despregadas quando mencionamos as duas terras com olhos de espanto. Mas “aquelas placas não estão ali por acaso”, traduz Teno Lehtpuu, o filho mais novo. “Em tempos de guerra, as opções eram mesmo essas e era assim que os militares se treinavam para as ocasiões.”

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