Não fosse provavelmente mentira e sentir-nos-íamos tentados a afirmar que este é o “micromuseu” mais interessante da Europa. Tanto pela dimensão do espaço e sorriso farto dos responsáveis, como pelo absurdo que une os diferentes espólios da casa. Debruçamo-nos sobre os quadros de escola onde se aprendia a escrever com metal porque não havia giz, espreitamos a bazuca encostada a um canto da sala e conversamos nos telefones made in Tartu. Os galardões, fardas militares e máscaras de gás, rádios e álbuns de família, centenas de pins e caixas de fósforos ficam para trás. “No primeiro piso também temos coisas muito interessantes”, alerta Teno, fazendo-nos subir as escadas em ritmo acelerado. O jovem pálido e magriço abre a porta alta do armário com um sorriso prenunciador, olhando-nos como se fosse mostrar um tesouro, mas o que salta aos olhos são brinquedos de plástico e garrafas de cerveja estónia dos anos 1990. “Esta é a história da [cerveja] Saku”, aponta a mãe de Teno, radiosa por cada rótulo contado. Na Estónia, muitos preferem os copos às armas.
Ainda não é desta que vamos a Narva. O convite da enfermeira Liina Heinvere para uma visita a Vergi, no Parque Nacional de Lahemaa, surge pelo telefone, precisamente quando nos encontramos a 40 minutos daquela aldeia piscatória. Caricaturando, os estonianos são um povo que, ao primeiro contacto, estende a mão fria como cumprimento, mas depois do terceiro tere (olá em estónio) e primeiro abraço convidam para almoços de domingo. Foi o que aconteceu com Liina.
Na casa dos Heinvere, o termómetro avisa os 16 graus negativos que se fazem sentir lá fora, em noite de lua cheia, pelo que os cornos de carvalho suspensos na parede vergam ao peso dos casacos. Enquanto Märt espalma colheres de mulgikapsad (guisado de carne de porco com batatas e chucrute) contra os pratos, lembramos a descrição de Kai no café Energia: “Se colocarmos na mesma sala pessoas de diferentes países, os estónios serão aqueles que se sentam juntos, falam em silêncio e sentem-se perfeitamente bem com isso.” As palavras de ordem são “jätku leiba” (que o pão dure), uma vez que o palato não é prioridade nestas latitudes.
Terminada a refeição, Liina e a vizinha Maarja guiam-nos à sauna. Homens para um lado, mulheres para o outro. Já sem toalhas sobre a pele, a temperatura sobe dos - 16 para os 90 positivos. “Aqui sinto-me uma africana”, brinca Liina, tornando à ciência que a fez enfermeira para dizer que, “quando o tempo se torna agressivo, muito frio e húmido, a sauna é o único remédio”, limpando o corpo e a alma. Ao fim de vinte minutos, Liina e Marja correm em direcção à porta. São agora duas ninfas boreais na neve macia, ressuscitando o sangue nas veias e gritando aos lobos de Lahemaa. Copiamos, que o silêncio assim o dita.
No segundo dia em Vergi, vemos o sol derreter os ramos pela janela e os mantos brancos põem-se brilhantes. Na Estónia, os dias soalheiros têm cara de milagre, o que nos conduz à certeza que já temíamos: nenhum caminho vai dar a Narva.