Fugas - Viagens

  • Diz-se que aqui, no país menos religioso do mundo, Deus é a natureza
    Diz-se que aqui, no país menos religioso do mundo, Deus é a natureza
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    Diz-se que aqui, no país menos religioso do mundo, Deus é a natureza
  • Na casa dos Heinvere, o termómetro avisa os 16 graus negativos que se fazem sentir lá fora, em noite de lua cheia
    Na casa dos Heinvere, o termómetro avisa os 16 graus negativos que se fazem sentir lá fora, em noite de lua cheia
  • Os milhares de canais de água foram os únicos lugares de paz durante os tempos de guerra e de ocupação da Estónia
    Os milhares de canais de água foram os únicos lugares de paz durante os tempos de guerra e de ocupação da Estónia
  • As casas na floresta são uma das opções de alojamento mais sui generis da Estónia
    As casas na floresta são uma das opções de alojamento mais sui generis da Estónia
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Estónia: Este país é para estóicos

Por Rute Barbedo (texto e fotos)

O Inverno dos rijos e o Verão do sol à meia-noite moram aqui. A Estónia é o lugar onde qualquer sonhador se proporia a escrever um romance sofrido, bêbedo de uma melancolia virgem e despida. Ao mesmo tempo, é um país de impossíveis: passeios sobre o mar ao volante de um Lada, casas perdidas na floresta, mil pântanos, mil lagos, mil ilhas.

A casa parece estar vazia, como tudo o que entremeia as proximidades do lago Kiid. Aguardamos, que o silêncio assim o dita. No nevoeiro frio, um vulto curvado começa a formar-se e o cão robusto que o acompanha quebra a floresta num eco de latidos. Aproximamo-nos e pedimos uma vela. Nada mais simples e preciso para uma casa sem luz, entre arvoredo maciço. Mas Juss – cabelos de neve, rosto cravado de rugas e olhos densos como cavernas – responde-nos com as mãos cerradas. Talvez fale estónio, talvez fale russo, talvez não fale. Insistimos na língua dos humanos, sopramos a vela invisível frente aos nossos olhos para mostrar o que queremos e Juss volta a dizer que não.

Apresenta o cão robusto e conta-nos – na tal língua de todos os homens – que vive ali sozinho desde sempre, no meio da floresta. Tivera tantos geradores quantos os tons que lhe passaram pelo cabelo e cortara a lenha de uma vida inteira, o que foi mantendo os invernos possíveis naquela casa de madeira isolada do mundo. Neste nenhures da região de Põlva, no sudeste da Estónia, a localidade mais próxima é Kooraste, que não chega a ser uma aldeia mas antes uma espécie de sopro no vácuo das árvores.

Voltamos à casa sem luz e às papas de aveia aquecidas à tona de uma salamandra. Às 16h, a noite é tão cerrada quanto a boca do velho Juss, pelo que o lago em frente ao alpendre permanecerá um mistério até à manhã seguinte. Aguardamos, que o silêncio assim o dita. A Estónia é assim, de tempo espaçado e de um espaço imenso: 45.227 quilómetros quadrados para 1,3 milhões de habitantes, ou seja, uma população oito vezes menor que a portuguesa para metade do território.

Diz-se que aqui, no país menos religioso do mundo, segundo um estudo desenvolvido pelo Instituto Gallup em 2009, Deus é a natureza. Até há uma data para abraçar as árvores e muitas noites para mergulhar nu na neve. Prova deste respeito pela “grande mãe” é a rede pública de casas e abrigos de floresta – www.loodusegakoos.ee  (o site existe apenas em estoniano, mas os tradutores online dão uma ajuda)– que cobre as 15 regiões do país com o intuito de albergar os amantes do pedestrianismo nas horas de maior frio e cansaço.

Os albergues fazem-se de troncos de árvores com a precisão de Geppetto e grande parte é acessível a custo zero. A única regra é a seguinte: uma vez instalado, é expressamente proibido vedar-se a entrada a qualquer outro caminhante que bata à porta, excepto nos alojamentos em que a estadia é paga (e que apresentam condições acima da média). Na amena casa de Kooraste, por exemplo, uma noite custa 32 euros para um máximo de quatro pessoas.

A manhã acorda na varanda do segundo andar, fria de uns dois graus negativos mas serena na vegetação que irrompe do lago. Pelos olhos desta janela, a Estónia compara-se a um filme turvo de Andrei Tarkovsky com a limpidez de Ingmar Bergman. Situa-se algures entre o romance nórdico e a poesia russa, com o veludo da natureza de um lado e a adstringência da História do outro. E, apesar do frio intenso, a beleza silenciosa faz-nos esquecer os ossos.

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