Se a natureza é generosa e revela água, sabemos que vamos ter animais em força. Camelos, burros, gado bovino e caprino. Saciam-se sem pressa. Há vida no meio do nada. E carcaças despojadas de carne.
Toneladas de pó e longas horas depois, por fim o Afrera. São 100 km2 alimentados pelas abundantes e salgadas águas termais, oriundas das margens nordeste e sudoeste. O lago também tem nome italiano, o do explorador Giuuseppe Maria Giulietti, cuja expedição pioneira em 1881 acabou com a chacina de toda a equipa, às mãos dos afar.
Estamos 103 metros abaixo do nível do mar. A ilha solitária no meio do lago é a mais baixa do globo. O negro do basalto dos montes Borale (812 metros) e Afrera (1295), berço de vulcões adormecidos, completam um quadro em contrastes que realçam a beleza das águas, em tons verde-esmeralda. Visão deslumbrante.
Tal como o lago Asale, o Afrera é uma importante fonte de sal grosso. Já foi mar interior.
O pó não tarda a diluir-se na magia do lago. Tão salgado que boiamos como no Mar Morto. Demasiado tempo a sonhar com este momento. Tão longas as horas de tormento em trilhos rabiscados na paisagem, que o corpo agradece o primeiro banho da jornada. O pegajoso sal será limpo em pequena nascente de improvável água doce a dez passos de onde nos banhamos. Milagroso chá quente. É zona vulcânica. A maior concentração em África.
Exploramos a aldeia, a 10 minutos a pé. As cabras são uma animação. Estão em todo o lado. Sem cerimónias. A sua gula nada poupa. Crianças acompanham-nos. Mais amigáveis do que nunca. Ninguém pede birr (dinheiro). Revezam-se a dar-nos as mãos. Querem tocar-nos. Estar próximas. E tirar/ver fotos.
O pôr do sol é em esplanada improvisada. Jogar conversa fora com os locais. Um agente da lei mal arranha o inglês, nem por isso se coíbe de me passar para as mãos a sua kalashnikov. Que tem um preço. Tal como a sua farda.
O jantar é na borda do Afrera. Mesa improvisada e candeias. Estes serões de África serão difíceis de cicatrizar...
O sujo colchão é novamente o meu hotel. As estrelas recortam a palmeira sob a qual vou dormir. A madrugada está cálida. Sombras e candeias movem-se noite dentro. A cachoeira que embala a madrugada é também balneário público. Um luxo, água quente e limpa. Banham-se com o mesmo despreocupado pudor com que o fizeram de dia.
O lago começa a mudar de tonalidades. O sol ameaça subir, obrigando as estrelas a saída com vénia. Cores vivas e um calor crescente ganham forma. Estimulante, este caos.
Dormir no vulcão
Continua a ser bem áspera a estrada que nos leva a El Dom, na base do Erta Ale (“montanha fumegante”). Na verdade, há momentos em que nos perdemos dos trilhos. Deixa de haver marcas de pneus na desértica paisagem. Os guias sabem a direcção, porém os caminhos ficam cada vez mais tortuosos. E susceptíveis de furos e avarias.
A terra batida é sinuosa. Depois, o trilho torna-se apocalíptico, esculpido em lava solidificada. Com o permanente cambalear da viatura, descubro ossos e músculos que desconhecia em mim.