“Viajámos num comboio comum de passageiros. (...) Anne não saía da janela. Lá fora era Verão. Pradarias, campos de restolhos, vilas voavam. Os fios telefónicos à direita, ao longo do caminho, dançando para cima e para baixo acompanhando as janelas. Era como se fôssemos livres.”
Lá fora era Verão e os Frank viajavam de comboio. O pai, Otto, o único sobrevivente da viagem — e do anexo — escreveu anos mais tarde sobre esse último sopro de liberdade. Ou para ser exacta, do que parecia ser um sopro de liberdade e era uma linha até à morte. Mas havia anos que Anne não via os campos, as vilas a voar e podia imaginar sentir a brisa na cara.
Vamos ao princípio da viagem. Numa manhã de Agosto igual às outras, quando os campos deviam estar de um amarelo intenso como nos quadros de Van Gogh — é assim que imaginamos a Holanda no Verão —, os oito habitantes do anexo da Prinsengracht 263 foram presos. Os Frank, os van Pels e Fritz Pfeffer.
Anne e a irmã Margot, a mãe Edith, o pai Otto são levados para o campo de concentração e extermínio Auschwitz-Birkenau. As duas meninas são depois levadas para Bergen-Belsen, onde morrem em Março de 1945, devido à falta de condições e de comida. Primeiro Margot, logo depois Anne. De tifo. A poucas semanas da libertação e do fim da guerra. Dois meses antes, em Janeiro de 1945, Auschwitz já tinha sido libertada pelas tropas russas.
Só a 3 de Junho, no regresso a Amesterdão, e depois de um sinuoso périplo pela Ucrânia e França, Otto soube da morte das filhas (na viagem de regresso já lhe tinham contado da morte da mulher).
E agora?
O começo da viagem é outro, na verdade. De certa maneira começa no dia 8 de Julho de 1942, quando a família deixa a sua casa no centro de Amesterdão e se refugia num anexo secreto. Na entrada do diário de Anne Frank desse dia pode ler-se: “Parece que passaram anos desde domingo de manhã. Aconteceu tanta coisa que é como se, de repente, o mundo se tivesse voltado de pernas para o ar. Mas como podes ver, Kitty, ainda estou viva, e isso é o principal, diz o Papá”.
A primeira coisa que Anne enfiou num saco, quando os pais lhe anunciaram, a ela e à irmã, que iam “mergulhar” (expressão usada para designar a passagem à clandestinidade), foi o diário-amiga a quem chamou Kitty (“Quero que o diário seja como uma amiga, e vou chamar a essa amiga Kitty”). É por causa dele que hoje sabemos dela.
O diário tinha sido oferecido a Anne pouco antes, pelos seus treze anos. Tinha uma capa axadrezada em vermelho e branco e foi preenchido numa caligrafia regular, segura. Há páginas em que há fotografias de família, mas no essencial é texto, um bloco sólido de texto.
A primeira entrada é de 14 de Junho. Nessa e nas seguintes, a despeito de uma noção crua do contexto de guerra e de perseguição aos judeus, Anne é uma menina com os sonhos e o mundo de uma menina de 13 anos, despreocupada. Apresenta as suas colegas de escola, caracteriza-as, bem como os rapazes, anota disputas infantis. “J. é uma coscuvilheira detestável, dissimulada, presumida e hipócrita, que pensa que é muito crescida. Jacque está enfeitiçado por ela, o que é uma pena.”