Fugas - Viagens

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O céu não tem hora de visita mas é tempo de ver Srinagar

O trânsito é intenso, motiva sucessivas paragens e manobras delicadas que provocam uma sensação de medo que a penumbra se encarrega de exacerbar. “Não há outro lugar assim no mundo. Srinagar tem algo de mágico. Não há um indiano que não sonhe com uma viagem, pelo menos uma vez na vida, ao vale de Caxemira”, enfatiza Pankaj Singh enquanto ajeita o seu turbante na cabeça, precisamente no momento em que os faróis iluminam um marco e eu começo a idealizar um mundo em que os acidentes matam muito mais do que balas, contrariamente a um passado manchado de sangue, com eternos conflitos que já roubaram a vida a mais de 70 mil pessoas.

Love the neighbour but not while driving.

A crise entre Índia e Paquistão pela possessão de Caxemira é tão antiga como os dois países, remonta à meia-noite do dia 14 de Agosto de 1947, com a divisão em dois estados: de um lado o Paquistão, do outro a União Indiana. Caxemira, vendida pelos britânicos ao marajá Gulab Singh em 1846, era, por sua vez, um estado com uma população maioritariamente muçulmana mas governado por um hindu — o também marajá Hari Singh, que vivia na ilusão de uma independência face aos novos todo-poderosos da região. Pura ilusão. Após 73 dias, a 22 de Outubro de 1947, o vale é invadido pelas tribos vindas do Paquistão que, ao longo do seu percurso, semeiam o terror, matando e pilhando com uma violência sem paralelo. Hari Singh solicita ajuda à Índia e, como preço a pagar pelo apoio militar, Lord Mountbatten (para os menos íntimos Louis Francis Albert Victor Nicholas Mountbatten, último vice-rei e primeiro governador-geral da Índia independente), pede ao marajá para assinar um documento de adesão à União Indiana, tratado que é rubricado a 26 de Outubro, um dia antes de as tropas indianas entrarem em Caxemira e expulsarem os invasores paquistaneses para lá do Uri. De então para cá, a disputa entre os dois países manteve em permanente angústia um povo sofredor, o som das metralhadoras rompendo o silêncio do vale silencioso, um futuro incerto.

As trevas à nossa frente, a estrada estendendo-se agora em linha recta, as montanhas foram vencidas e o vale recebe-nos, anunciando Srinagar, com as suas luzes tímidas, na linha do horizonte. O motorista permanece silente, Pankaj Singh continua a emitir sinais de simpatia. “Já tens onde pernoitar? Eu posso ajudar, não te preocupes.” No meu ser não há sintomas de preocupação, apenas uma certa ansiedade em conhecer a cidade que está tão perto do céu — e ela entra-me, mais tarde do que esperava, pelo campo de visão, motorizadas quebrando o silêncio da noite, rumores imperceptíveis vindos de restaurantes e das bancas de comida ainda abertas àquela hora, para um lado a Karakoram, para o outro a cordilheira de Pir Panjal.

Sob o céu cheio de estrelas, o momento teve algo de hilariante mas também de gratificante. Invoco-o como um exemplo de tolerância de que o mundo começa a ficar estéril mas, rindo-me para dentro, numa mistura de sentimentos, traço uma analogia com uma sandes — um católico sentado no meio de uma motorizada, conduzido por um muçulmano e protegido por um sikh, Pankaj Singh, rompendo a serenidade de uma zona residencial em busca de um quarto para um corpo exausto mas, na minha qualidade de católico, com a alma a explodir de gratidão. Mais morto do que vivo, bebi o chá que me foi oferecido antes de me arrastar para uma cama arejada por duas janelas abertas sobrepujando as águas serenas de um rio onde se reflectem as luzes mortiças das casas ancoradas numa das margens e a ponte que as liga.

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