Fugas - Viagens

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O céu não tem hora de visita mas é tempo de ver Srinagar

Mesmo em frente da Jama Masjid, está a pequena Rozabal, nos seus tons esverdeados, modesta e não menos controversa por conter um dos maiores mistérios do mundo: supostamente, a sua cripta acolhe o túmulo de Jesus Cristo e alguns estudiosos, debruçando-se sobre a temática, chegaram à conclusão de que Yuza Asaf não é outro se não Jesus Cristo. De acordo com tradições que datam do século I d.C. e de alguns trabalhos antigos em farsi, árabe ou sânscrito, Yuza Asaf era o Profeta de todas as crianças de Israel, crucificado pelo seu povo e que, tendo sobrevivido, rumou a Caxemira, por onde teria andado (mas também por outros locais da Índia, inspirando-se na religião budista) com a idade de 13 anos e até completar 29, uma teoria que pode soar, aos ouvidos de muitos, excêntrica ou blasfema. Verdade ou mentira, a tese ganhou maior consistência na década de 1980, quando o viandante russo Nicolas Notovitch terá descoberto, em Hemis Gompa, um centro espiritual na região de Leh, documentos que corroboravam esta hipótese e descritos no seu livro A Vida Desconhecida de Jesus Cristo.

Em todas as mesquitas por onde me aventuro, em Srinagar, não sinto, uma única vez sequer, que sou um intruso, os sorrisos e as palavras dóceis encorajam-me a entrar e a comunicar. Uma expressão viva de tolerância que não desaparece mesmo nos espaços onde os meus olhos apenas podem espreitar desde a porta, como sucede, a meio de uma manhã cinzenta, na Khanqah Shah-i-Hamadan, o mais bonito de todos os monumentos históricos da cidade. Ocupando uma área onde em tempos remotos se ergueu uma das primeiras mesquitas de Srinagar, foi fundada pelo santo persa Mir Sayed Ali Hamadani, alcunhado de Shah. Hamadani terá chegado a Caxemira em 1372, integrando um grupo de 700 refugiados que deixou o Irão após a conquista de Timur — na verdade é apontado como o responsável pela conversão de quase 40 mil pessoas ao sufismo mas também por ser o primeiro a ensinar aos indígenas a arte de fabricar os famosos tapetes persas.

Olho, uma vez mais, a cidade desde o alto da colina, Srinagar espraiando-se aos meus pés, serena, as balas não cruzam os céus, nada mais do que uma suave brisa, um povo hospitaleiro, benevolente e persistente que não quer ser da Índia nem do Paquistão. Apenas de Caxemira. As últimas horas da noite que antecede a minha partida são passadas numa casa-barco, no mesmo para onde os meus passos me levam sempre, na certeza de que ali sou recebido como se recebem os viajantes em Srinagar. Bebo chá, converso, limito-me a olhar as águas tranquilas do lago Dal, por vezes em silêncio. E não preciso de mais nada, apenas de saber que respiro. A shikara aproxima-se, carregada de mercadoria, e a noite estende-se até ser vencida pela madrugada, anunciando a alvorada pintada de cores melancólicas.

A estrada segue, cheia de curvas, de regresso a Jammu, como segue, até um futuro incerto, a memória cheia de memórias. Agora, muito do trajecto é a descer, quando ocorre a maioria dos acidentes, a serpente já se avista, ameaçadora, as gargantas com as suas bocas abertas que terminam bem lá no fundo.

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