Fugas - Viagens

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O céu não tem hora de visita mas é tempo de ver Srinagar

Soldados armados até aos dentes que se abrem para outra arma que é o sorriso caminham para cá e para lá na praça onde se projecta a torre no relógio. Raras são as lojas comerciais abertas ao público mas um pequeno restaurante, numa esquina, convida-me a entrar para um pequeno-almoço que não tardará a ser acompanhado com uma especialidade local, comprada para mim por um atleta que me jura ter conquistado uma medalha de bronze, não sei em que modalidade, nos Jogos Asiáticos, em 2006, no Qatar. A atmosfera é familiar, o paraíso bate à porta não na forma de paisagens mas de atitudes, dar parece ser uma prioridade em relação a receber, talvez porque os pobres têm mais dignidade; aqui pelo menos, neste recanto tantas e tantas vezes conturbado, mais vezes ainda esquecido, carregam-na como se de um filho se tratasse, um filho que não ousam abandonar.

O murmúrio chega até mim, primeiro dissimulado, depois evidente, as águas agitando-se à passagem das shikaras, o majestoso lago Dal potenciando a sua beleza, nas suas cores, nos sons, nas gentes, na quietude, na melancolia, na dádiva que os céus lhe ofereceram. Há lugares na terra dos quais não é necessário falar de monumentos, de atracções, do muito ou pouco que se pode fazer ou visitar — basta senti-los, como um prato que nos chega à mesa e ao qual as nossas mãos estão interditas de tocar, ainda que nada nos impeça de cheirar. Assim é Srinagar, magnificente na sua beleza natural, como natural é a sua gente.

Da minha posição privilegiada avisto o médico aproximando-se de barco, o vendedor, o barbeiro, outros homens de negócios, uns mais lícitos do que outros, a vida vivendo o seu ritmo diário, sem nada nem ninguém perturbar. Gosto desta família, habituei-me a visitá-la, a passar o meu tempo com ela, numa imobilidade quase total, apenas com tempo para dar tempo aos diálogos, às histórias, à contemplação do lago. “Acordava todos os dias bem cedo interrogando-me: o que vou eu arranjar para os meus filhos comerem? Não havia negócio, era como se o relógio do tempo se tivesse detido, tudo o que carregava no estômago, eu e a minha mulher, era fome. Nós não queremos fazer parte da Índia, nós não queremos integrar território paquistanês, tudo o que nós desejamos é pertencer a Caxemira. E, talvez por isso, sofremos, mais ainda do que o nosso estômago», conta-me Youssuf, não sem deixar correr uma lágrima, na casa-barco de onde avisto, sonhando, o grande lago Dal, com as suas embarcações-residências espelhando-se na água, nas suas múltiplas tonalidades, fazendo adivinhar mais um pedaço do paraíso.

Perfume intenso

Por este lugar abençoado pelos deuses e imortalizado, desde a década de 1960, por George Harrisson, num tempo em que, rasgando com notas o silêncio do lago, aprendeu a tocar sitar numa casa-barco, o viandante deve deixar-se levar pelo tempo, umas vezes indolente, outras desperto, sem mapas, sem planos ou talvez com um único: o de ser feliz numa etapa demasiado efémera da sua existência.

Duas jovens correm na minha direcção, respiração ofegante, solicitando-me uma fotografia, uma menina pontapeia uma bola multicolorida com a inocência das flores. Mais para lá, um casal na meia-idade veste trajes típicos de Caxemira para a pose tradicional, imitando aqueles que o fazem no lago, a bordo de uma shikara, sob anúncios de um tempo que não é deste tempo, de uma era fotográfica anterior à digital, quase esquecida mas para mais tarde recordar. Quem visita Srinagar acaba por desembocar, mais cedo ou mais tarde, em algum dos jardins construídos na era Mughal, ou no Shalimar Bagh, o mais famoso, ou no Nishat Bagh, o mais impressionante, protegido por montanhas imponentes recortando os céus, com as suas flores crescendo por todo o lado, os seus lagos em socalcos e as chinar, árvore nacional de Caxemira, bordejando trilhos que conduzem a pavilhões ou a fachadas de arcos elegantes. Com uma panorâmica privilegiada sobre o lago Dal, o Nishat Bagh, desenhado e construído em 1633 por Asif Khan, o irmão mais velho de Nur Jehan, imperatriz do Império Mughal e uma das mais poderosas e influentes mulheres do século XVII, é, muito mais do que um jardim, uma imagem poética e um retrato fiel da docilidade destas gentes e do clima.

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