Fugas - Viagens

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O céu não tem hora de visita mas é tempo de ver Srinagar

Os anos da fome

Foi um latido teimoso, com uma constância capaz de pôr um homem em pulgas, a causa de um despertar agitado mas logo serenado pelo quadro que se me oferecia à contemplação desde uma das molduras viradas para o rio. A frescura da manhã invadia o quarto, uma casa-barco quase não se mexia nas águas do Jhelum, tributário do temível Chenab, e os sons pareciam amigáveis. A chuva começou a cair, aumentando de ritmo, as gralhas continuaram a voltear no céu cinzento. Quando a cortina se abriu e o sol fez a sua aparição em força, impiedoso, desci até à casa-barco, sem destino e sem destinatário, para, antes de mais, como se impõe em Caxemira, beber um chá para o qual sou convidado. A mulher, de olhos tristes, fita o infinito, como quem olha sem ver, e envolve nos braços a sua filha com um cabelo tão curto que mais se semelha a um rapazinho; o homem, de amplos sorrisos e menos palavras, prepara a bebida. “Tempos muito difíceis. A ausência de turistas, provocada pelas perturbações políticas, provocou danos irreparáveis na economia do vale. Era uma luta diária, constante, ter qualquer coisa para comer e, muitas das vezes, não mais do que o suficiente para as crianças. Fome, desespero e mais fome”, recorda Shabir Ahmad Pakhtoon, proprietário do Young Sweet Star enquanto lança os olhos no chão como se experimentasse um sentimento de vergonha perante a família silenciosa.

No início desta década, poucos foram os que, temendo a insurgência anti-Índia, se aventuravam a pôr o pé em Caxemira; por esse tempo, segundo dados oficiais, o vale não recebeu a visita do que mais de 27 mil turistas locais; lentamente, após lutas quase sem tréguas, a acalmia banhou Srinagar e, desde 2010, ano em há registo dos derradeiros violentos confrontos, a cidade e o seu vale começaram a atrair visitantes, predominantemente indianos — em 2012, num total de quase um milhão de turistas, apenas 23 mil eram estrangeiros, um sinal revelador do sentimento de insegurança que ainda assalta viandantes de outras nacionalidades.

“Hoje o comércio está praticamente encerrado e não é por ser um dia festivo — é uma forma de protesto. Mas não te assustes, mesmo que vejas soldados bem armados nas ruas, é apenas uma medida de prevenção”, aconselha-me Shabir Ahmad Pakhtoon enquanto eu mergulho em números: a despeito da desmilitarização, acredita-se que meio milhão de soldados (um por cada 20 habitantes do estado) estão colocados em Jammu e Caxemira, assim como são visíveis arame farpado aconselhando distância de lugares mais sensíveis e bunkers em pontos nevrálgicos ou simples guaritas devidamente camufladas. “As gentes de Caxemira são boas, gostam de receber, o visitante é bem-vindo. E há sempre tempo para um chá porque quem nos visita tem de sentir-se em casa, mesmo se, como tu, é apenas nosso convidado. Queres mais um biscoito? Outro chá?”

Olho a filha e a mãe, as duas ainda envolvidas num abraço que se eterniza, sinto vontade de permanecer. “A partir deste momento, não vais tardar a sentir por que razão Caxemira é conhecida como o paraíso na terra.” As palavras de Shabir Ahmad Pakhtoon soavam a emoções e eu já as sentia, cada vez mais próximas, incentivando-me a conduzir os meus passos quando a minha cabeça ainda permanecia ali, numa total inércia, deixando o tempo correr, pausadamente, como as águas do rio ao qual viro as costas com a sensação de já carregar comigo um fragmento sólido do paraíso.

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