Fugas - Viagens

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O céu não tem hora de visita mas é tempo de ver Srinagar

A sensação perdura quando salto para dentro de uma shikara, essa espécie de gôndola que é o símbolo cultural de Srinagar, e me deixo conduzir ao longo do lago banhado de dourados, com os seus barcos de cores alegres resplandecentes ao sol que desce nos céus. Em Caxemira, nenhum estrangeiro tem o direito de possuir terra, uma interdição que remonta aos tempos da colonização e levou os britânicos a lançar para as águas do Dal os seus palácios flutuantes, muitos deles transformados hoje em hotéis luxuosos e mantendo, por uma questão de marketing, a toponímia inglesa. É no lago, com os seus 18 km2, que reside a verdadeira essência de Srinagar, a sua alma, no movimento charmoso das shikaras, levando e trazendo pessoas e produtos, nos seus jardins flutuantes e nos lótus em flor, a paisagem e a sua magia que permanece intacta, a despeito de todos os conflitos que martirizaram a região.  

A noite tomba sobre a cidade, as nuvens da cor do chumbo acumulam-se e enchem o céu. Da janela do meu quarto, a dois passos do Dal, vejo os relâmpagos incendiar a penumbra e, envolto nos meus cobertores, como um gato assustado, ouço a chuva caindo ruidosamente sobre os telhados de zinco de Srinagar. Recordo Youssuf, então mais animado:

- Em Bombaim a moda chega e ninguém sabe; em Srinagar, é o tempo.

Mercado flutuante

Dele não retenho o nome mas guardo a imagem do seu rosto cruzado por rugas como rios, a pele queimada do sol que preguiçosamente ainda se esconde, ao alvor do dia, o anúncio de uma luz sempre diferente à medida que a manhã se espraia. Homens ora afastam, ora aproximam os barcos, vivendo descontraídos mas inquietos, porque o momento feliz do reencontro, no mercado flutuante, com os amigos, pode não ser suficiente para encher estômagos necessitados nas horas vindouras. Os legumes e as frutas, mas também as flores, vão passando de mão em mão, mal o sol emite os seus primeiros raios quentes o mercado emite os seus últimos suspiros e, partindo no exacto momento em que chegam dois grupos de turistas carregados com as suas câmaras fotográficas, a shikara leva-me de volta através de canais tranquilos, mulheres lavando a roupa ou utensílios de cozinha nas suas águas, crianças dando vida, com as suas brincadeiras e os seus gritos, à manhã que avança. Ao cimo, envolto numa espécie de neblina e coroando uma colina proeminente, está o Hari Parbat Fort, a sentinela que vigia a cidade desde o século XVIII (acesso interdito ao público) e que, para os hindus, era, originalmente, uma ilha a partir da qual Vishnu (o deus da manutenção do universo que, com Shiva e Brahma, forma a trindade do hinduísmo) e os amigos derrotaram Jalodabhava, o mítico demónio do lago.

Um trilho estreito, trepando o dorso da colina arborizada, conduz-me a Shankaracharya Hill, também conhecida como Takht-i-Sulaiman (Trono de Salomão) e um lugar sagrado desde há 250 anos a.C., com o pequeno templo Shiva (século XI) recortando-se no cimo de todas as coisas. Visto desde as alturas, sob um céu sem nuvens, o lago, com as suas centenas de barcos, é ainda mais mágico; para o outro lado, a cidade antiga, com os seus telhados de zinco que quase não deixam ver as ruas e as suas gentes negociando como já o faziam em tempos imemoriais. Caminhar por estas artérias impregnadas de sons e cheiros é como entrar na máquina do tempo, regressando a um passado distante feito de velhos costumes e tradições seculares e carregado de misticismo quando, deambulando sem destino aparente, espreito lugares de culto, como a Jama Masjid, a principal mesquita de Srinagar, com as suas impressionantes 378 colunas (todas elas de um único tronco de um cedro-do-himalaia, árvore de grande porte que atinge 60 metros de altura e um diâmetro de três metros) segurando um tecto que abriga mais de 30 mil fiéis.

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