Fugas - Viagens

  • A arte da Ilha do Descanso
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  • Colónia do Sacramento, no Uruguai
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Tigre, a cidade líquida do delta do Paraná

O crescimento imobiliário no Tigre tornou-se mais visível a partir da década de 1990, o que está longe de ser uma idiossincrasia local, pois nessa altura a valorização imobiliária passou a ser mais um expediente multiplicador do dinheiro. Foi então que nomes como Nordelta, Santa Bárbara (por favor, não confundir com a praia da Califórnia com o mesmo nome), Santa María de Tigre, Altamira ou Villanueva entraram no léxico dos imobiliários e de uma nova classe média que aspirava a um estatuto e a um tipo de vida distinto dos padrões habituais de uma cidade movimentada e populosa.

Os arbolitos...

Douglas Jones foi um dos muitos porteños — como se apelidam os habitantes de Buenos Aires — a transformar-se num bonaerense, alguém que mora nos seus arredores. Arquitecto de 38 anos, filho de inglês, mas com o cabelo alinhado sobre a nuca, como um dançarino de tango, Douglas é um apaixonado pelo Tigre e pelo Nordelta. Na varanda do seu apartamento, enquanto se concentra nos grelhados da praxe, aponta para as luzes que cintilam ao longe: “Tigre é já ali.” E a cidade de Buenos Aires, para o bem e para o mal, também está ali por perto, omnipresente.

“Há assaltos e roubos em Buenos Aires. Há assaltos e roubos na Argentina, mas aqui não”, explica, contente, quando encontra alguém incrédulo, a quem pode explicar e voltar a explicar a primeira vantagem de morar num local como Nordelta. Sim, é verdade, Nordelta é um caso à parte. É um bairro da classe média, classe média-alta, com bons carros estacionados, bons restaurantes à espera, urbanismo competente e espaços públicos cuidados. Edifícios circundados por muros, com jardins, piscinas, ginásios, mas sem ceder ao desvario da obsessão pela segurança. “É um local tranquilo, fora da confusão da cidade”, enumera Douglas Jones, “perto do rio, perto da natureza, com mais qualidade urbana”.

O que locais como Nordelta oferecem a quem vive na cidade é a dupla vantagem da proximidade e da distância. A proximidade de um emprego num escritório; dos célebres teatros como o Cólon; de cafés como o Tortoni; ou de livrarias como a El Ateneo, o espectáculo de lombadas que ocupa o palco e os pisos de um antigo teatro no número 1860 da avenida de Santa Fe (e que o The Guardian classificou como a segunda mais bonita do mundo, antecedendo outra pérola, chamada Lello, no Porto).

Mas, sobretudo, distância. Distância de uma cidade que é um aglomerado urbano de municípios, com três milhões de pessoas no seu centro; do trânsito acelerado nos dois sentidos das veias da avenida 9 de Julho; centrípeto pela manhã e centrífugo pelo entardecer, mas sempre interminável; do medo e do risco dos assaltos ou dos roubos, que são uma cicatriz inapagável no rosto das cidades onde milhões de pessoas se cruzam diariamente; ou da lava que a praça de Maio ameaça expelir sobre a política argentina e a Casa Rosada, de onde Cristina Kirchner só sai de helicóptero, para não se enredar nos novelos de uma cidade arisca.

Douglas já projectou algumas moradias em Tigre e, como arquitecto, na Argentina não se limita a projectar: é a parte importante; é talvez a parte mais interessada na comercialização imobiliária. Faz parte dela. Acontece que a actividade, nos últimos anos tão melíflua como as águas do delta, excepto quando este extravasa, tem vindo a piorar com a crónica doença argentina da dívida pública. Num país que luta para evitar o recorde de intervenções do Fundo Monetário Internacional, o crescimento da economia vive ameaçado, o Governo esbraceja contra os credores internacionais e um tribunal de Nova Iorque. “O crédito limitado cancela o investimento imobiliário e suspende a economia”, observa o arquitecto, entre o analista e o pesaroso. Os mais realistas, ou mais pessimistas — esta é uma eterna e simplista dicotomia —, escrevem nos jornais que o crédito falha, a economia estiola, o mercado informal cresce.

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