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Tigre, a cidade líquida do delta do Paraná

Por Amilcar Correia

Buenos Aires tem o Tigre e o Tigre tem vários rios e um delta. E o delta tem várias ilhas, sempre em constante mutação. Embora bastante popular entre os argentinos, o delta do Paraná é um destino praticamente desconhecido fora do país. Bem-vindos ao “secreto arquipélago de verdes ilhas”, como lhe chamava Borges, e ouçam o canto das caturras.

Domingos Faustino Sarmiento queria o que na época ninguém queria em Buenos Aires: debruçar-se à janela sobre as margens do delta do Paraná. Esta casa amarela — protegida por um cubo de vidro com pretensão de redoma — não foi o mero presente de um fazendeiro amigo, parceiro de ideias e cúmplice de exílio, quando ambos combatiam Juan Manuel de Rosas, do outro lado da filigrana fronteira que separa a Argentina do Chile.

A casa que Federico Bedoya construiu em 1855, e que ofereceu a Sarmiento cinco anos depois, transformou-se num modelo de moradia do Tigre e num caso de presciência e de bom gosto do futuro presidente da nação argentina (1868-1874). Sarmiento habitou esta casa durante três décadas e durante esse período não se cansou de repetir: “Ni piedra ni ladrillos.” Quando tomou conta da Prócida, como lhe chamou — em homenagem a uma ilha defronte de Nápoles —, Sarmiento mimetizou os conquistadores do Oeste quando estes se apropriavam dos territórios índios: soltou a alegria numa série imparável de disparos.

O legado do sétimo presidente do país ainda hoje lhe navega à porta. Sarmiento não se limitou à pólvora e à exuberância fumegante e dos Estados Unidos, onde foi embaixador argentino, importou a plantação de sementes de pecanes (a variedade de noz que cresce nas ilhas do delta) e a defesa resoluta da arquitectura em madeira. Justamente, foi a pensar na sua reprodução que o novo isleño fez a apologia da plantação do salgueiro, convicto de que esta árvore era a matéria-prima mais indicada para construir em solo tão lacustre. As casas de madeira, construídas à imagem e semelhança da Prócida (que é hoje um museu e biblioteca), deitaram-se, então, de bruços sobre a água dos vários braços que desenham o delta. E, languidamente, talharam o Tigre.

Sobre ele, num poema chamado Sarmiento, escreveu o argentino mais inglês da América do Sul, Jorge Luis Borges: “Abstraído en su larga visión como en un mágico cristal que a un tiempo encierra las tres caras del tiempo que es después, antes, ahora, Sarmiento el soñador sigue soñandonos.” E se quiserem saber o que é o Tigre, fiquem já a conhecê-lo nas palavras do mesmo argentino, em Las Islas del Tigre: “Ninguna otra ciudad, que yo sepa, linda con um secreto archipiélago de verdes islas que se alejan y pierden en las dudosas aguas de um rio tan lento que la literatura ha podido llamarlo inmóvil.”

Neste “secreto arquipélago” de múltiplas ilhas irrequietas, que não cessam de se movimentar, de se formar, devido à sedimentação das areias que o rio arrasta desde Minas Gerais, no Brasil, a imobilidade é uma aparência enganadora e literária. Elas são o resultado de uma peculiar confluência. À volta da cidade, intersectam-se as águas dos rios Tigre, Lujan ou Sarmiento (em honra do antigo presidente) e, claro está, o segundo rio mais comprido da América do Sul. O Paraná, até aqui chegar, escorre por mais de quatro mil quilómetros, até desaguar no delta e no rio da Prata, e empurra consigo toneladas de sedimentos.

O seu rasto é impressionante: une-se ao Iguaçú para determinar a fronteira natural entre Brasil e Argentina e junta-se ao Uruguai para formar o rio da Prata, que separa a Argentina do Uruguai. É bem certo que um delta assim tem as suas especificidades: é o quinto maior do mundo; é o único de água doce que não desagua no mar, mas sim noutro rio; e espraia-se por 17.500 quilómetros quadrados, dos quais 14 mil são compostos por ilhas. Por isso, é o único delta onde se formam novas ilhas, o único delta sempre em constante mutação.

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