Fugas - Viagens

Qatar, tão longe do passado e tão perto do futuro

Por Sousa Ribeiro (texto e fotos)

Se, no início da década de 1950, o minúsculo emirado não possuía uma única escola ou um hospital, hoje nada falta e são mais os prédios em construção do que aqueles que já foram erguidos, uma metamorfose intimamente ligada a uma qualidade de vida quase sem paralelo no mundo.

- Estivemos aqui juntos, não te recordas?

Olho uma vez mais e abano a cabeça em sinal negativo. À minha direita ergue-se uma estrutura bizarra, umas bancadas rodeadas por dezenas de gruas que se recortam contra o céu sem uma única nuvem.

- Não te lembras? É o Estádio Khalifa! Assistimos a jogos do Mundial de Sub-20 sentados na bancada de imprensa!

A minha memória recua até 1993 mas não alcança memórias, nem do estádio, nem de nada em Doha, e Dafrallah Mouadhen, jornalista tunisino que viveu no país por essa altura antes de se mudar, anos mais tarde, para Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos, concorda comigo:

- Que grande transformação sofreu o Qatar, é verdade!

Deixo o olhar vaguear enquanto caminho sob um sol abrasador, campos relvados por todos os lados, um deles destinado apenas às mulheres, jardins bem tratados, trilhos que homens e mulheres (por vezes estas de abaya, o vestido negro, e hijab, o véu, mais um boné de uma marca desportiva) percorrem às primeiras ou às últimas horas do dia, tão intenso é o calor durante as restantes, entregando-se ao exercício físico antes ou depois de mais um dia de trabalho (ou, na maior parte dos casos, de inércia).

- Todos falam do Mundial de futebol, em 2022, mas a maior parte ignora que o Qatar já organizou, este ano, o Mundial de Voleibol, no próximo ano será o de Andebol e, em 2019, acolherá os Mundiais de Atletismo.

À minha frente desenha-se uma nave com o tecto pintado de azul, parte importante do enorme complexo desportivo que é hoje conhecido como Aspire Zone, uma academia que oferece aos jovens recrutados um pouco por todo o mundo as melhores condições para se tornarem, dentro de poucos anos, futebolistas de elite, especialmente tendo em vista o Mundial de 2022. No total, são nove campos de treino, piscinas olímpicas, uma ementa preparada por nutricionistas, cursos de computador — mais do que um sonho, uma realidade para qualquer desportista (o futebol não é exclusivo) que já começa a dar resultados, como atesta o facto de o país se ter sagrado, em Outubro de 2014, na Birmânia, campeão asiático de sub-19, uma proeza inédita na história do futebol do minúsculo emirado.

Para trás, erguendo-se acima de tudo e de todos, um hotel que ameaça tocar o céu, com uma piscina a 80 metros de altura, saindo para o exterior, como uma língua, de onde os clientes, assumindo a dimensão de uma formiga à distância a que me encontro, apreciam a panorâmica sobre a cidade onde os prédios crescem mais do que os cogumelos nos campos. À primeira vista, passeando indolentemente por Doha, fico com a impressão de que a capital do Qatar foi vítima de qualquer catástrofe, qualquer calamidade — sou capaz de jurar que são mais os edifícios em construção do que aqueles cujas obras já foram concluídas.

Mais tarde, errando pela Al Diwan Street, em Musherib, no coração da velha Doha, sente-se, mais do que em qualquer outro lado, como a capital está a mudar radicalmente a sua face. Nesta zona, habitada maioritariamente por imigrantes provenientes da Índia, do Paquistão, do Bangladesh, do Nepal e do Sri Lanka, vai desaparecendo, aos poucos, o pequeno comércio, as lojas baratas de roupa e de comida do Sul da Ásia. Auferindo salários que dificilmente ultrapassam os 500 euros — e desta verba cerca de 70% é enviado, todos os meses, para a família —, muitos destes homens estão habituados, desde o dia em que chegaram ao Qatar carregando na mala pouco mais do que a esperança de uma vida melhor, a pagar as suas contas no início de cada mês, após receberem os seus ordenados, uma situação que se foi tornando comum para os proprietários, fiéis aos seus cadernos onde vão apontando as dívidas dos clientes.

--%>