Fugas - Viagens

  • Luís Pedro Duarte
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Continuação: página 3 de 8

Pelo Ceará numa 'aventura solidária' de espantos

Também nós estávamos a fazer uma espécie de “viagem de espantos”. Também nós estávamos rodeadas de pessoas com “as mais incríveis histórias”. Cada vez que me sentava com alguém, a conversar, percebia isso. Até Cícero, o motorista, tinha, como ele dizia, “uma história bem complicada”.

“Meu pai matou minha mãe à machadada”, contou-me Cícero. Ia nos dez anos. Ele e a irmã ficaram com a avó materna, os dois irmãos com a avó paterna. “Não sei se foi instinto, se foi loucura da cabeça dele.” O homem não se fartava de cachaça. Os filhos mal punham os pés na escola. “Eu só tinha direito de ir para a escola um dia por semana. Trabalhava o dia inteiro na roça. Quando chegava a tardezinha, ia separar o bezerro da vaca para noutro dia tirar o leite. Ai de mim se falasse que não ia. Meu pai batia com chicote. Então eu vejo que a minha mãe morreu para dar vida boa para a gente. Se não tivesse acontecido isso aí, que seria de nós lá na serra?”

Antónia Alexandre Gomes, a mais sorridente das cozinheiras apesar de há uns meses um cancro lhe ter roubado um peito, também tinha uma das “mais incríveis história”. Casou-se mal completou 12 anos. “Eu nunca tinha visto o meu marido.” Viu-o numa cerimónia religiosa. “Fiquei conversando mais ele. Aí, inventaram que eu tinha fugido mais ele. Mãe foi atrás de mim, me encontrou lá”, contou ela, servindo-se do que lhe resta da memória para reconstituir os diálogos.

- Hey, vem para casa – ter-lhe-á pedido a mãe.

- Deixa-me terminar a reza.

- Vamos para casa.

Ao ouvir aquilo, Francisco, o rapaz que estava com ela, interferiu.

- Vamos, que eu vou também.

Quando chegaram a casa, o pai estava “injuriado”, isto é, “com raiva”. Naquele tempo, “um homem não podia mexer na filha dos outros”. Não era como agora que rapazes e raparigas podem namorar ou, pelo menos, ter um “quebra galho”, isto é, um amigo ou uma amiga colorida.

- O que você quer com ela?

- Senhor José, eu quero com ela o que o senhor quiser.

- Pois vou ajeitar o casamento.

- Eu quero casar com ela – retorquiu Francisco, virando-se, de imediato, para Antónia - Você quer?

- Eu quero! Já estou perdida mesmo na boca do povo.

Era uma menina. Só fora menstruada uma vez. “Nem tinha noção de casamento”. Mas casou-se em menos de um ai. E, volvidos nove meses, pariu o primeiro filho. “Foi tira e queda!” Continua casada com o mesmo homem. “Eu tenho 47 anos e ele 51. Sou a mulher mais feliz da vida. Graças a Deus, ele não bebe, não fuma e não sai de casa; eu bebo, eu fumo, eu saio de casa e ele não diz nada!”

Passaram muita privação. No início, não tinham nem um banco para se sentarem. Só uma cama num quartinho emprestado. O marido trabalhava na roça. “Ainda trabalha.” Os fazendeiros pagavam mal. “Ainda pagam.” Conhece bem os valores praticados na região. “Vinte e cinco reais a diária sem almoço e sem merenda. Com almoço e com merenda só é 20.” Para que dá? “Ele cria porco também, assim para ajudar… Cria galinha. Gosta de pescar. Tem dois burros, duas carroças. O pessoal precisa de voltar uma terra, ele vai lá.”

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