Não haveria alojamento de luxo. Ficariam num centro de formação do parceiro local da AMI, a Associação Comunitária de Milagres (ACOM). Partilhariam quartos com redes mosquiteiras e chuveiros de água fria. Mal chegaram, uma galinha infiltrou-se num deles e pôs um ovo numa cama.
Não haveria dieta especial. Três senhoras preparariam pratos locais — galinha frita, carne-de-sol (carne bovina salgada e seca), mugunzá (grão de milho cozinho com leite de coco e mão de vaca), mandioca, cuscuz… E que sucesso haveria de fazer o baião de dois (mistura de arroz, manteiga e queijo).
Não imaginava que o apelo da boa conversa, da sonora gargalhada, da saborosa sesta me roubaria o tempo que pensara destinar à leitura. Não levara muitos livros para ler, é verdade. A biografia Padre Cícero, de Lira Neto, não chegara a tempo. Não encontrei Os Sertões, de Euclides da Cunha. Na pequena mala tinha apenas dois livros: um vindo da viagem anterior (Politics in China, de William A. Joseph) e outro talhado para esta (Seara Vermelha, de Jorge Amado).
Seara Vermelha pareceu-me uma leitura adequada, apesar de remontar aos anos 1930. Há um paralelismo entre a seca e a migração hoje notícia e a história de Jerónimo e da mulher, Jucundina, que decidiram partir “em busca do país de São Paulo”, a pé, levando no dorso do burro, Jeremias, todos os seus haveres. E que outro escritor seria capaz de descrever tão bem o Sertão? Graciliano Ramos? Não o conhecia ainda nem ao seu Vidas Secas. Amado era garantido.
Ora veja: “Agreste e inóspita estende-se a caatinga. Os arbustos ralos elevam-se por léguas e léguas do sertão seco e bravio, como um deserto de espinhos. Cobras e lagartos arrastam-se por entre as pedras, sob o sol escaldante do meio-dia. São lagartos enormes, parecem sobrados do princípio do mundo, parados, sem expressão nos olhos fixos, como se fossem criaturas primitivas. São as cobras mais venenosas, a cascavel e o jararacuçu, a jararaca e a coral.”
Tivemos tempo para nos embrenharmos no interior da caatinga, apanhar castanhas de caju e assá-las, visitar vizinhos velhos e desdentados, ver vacas e bois esqueléticos, enfraquecidos, alguns tão enfraquecidos que mal de aguentavam em pé. José Neto, filho de uma das cozinheiras, rapaz de olhos enormes, demasiado pequeno, demasiado delgado, conhecia todos os atalhos e não temia cobras, mandacarus ou arames desses que separam propriedades e rasgam pele.
Não tem pai, o rapaz. O pai foi ganhar a vida para São Paulo e morreu, nem sabe a família como. “Muita gente vai e não volta”, comentou, fingindo não se importar. As suas palavras ecoavam na minha cabeça quando, já no voo de regresso, por fim, pude ler Seara Vermelha. “Muita gente vai e não volta…”
“Ouvem-se, nessas cidades que bordejam a caatinga, as mais incríveis histórias, sabe-se das desgraças mais tremendas, aquelas que nenhum romance poderia conter sem parecer absurdo”, escreveu Amado. “É a viagem que jamais termina, recomeçada sempre por homens que se assemelham aos que os precederam como a água de um copo à água de outro copo. São os mesmos rostos de indefinida cor, os pés gigantescos, de dedos abertos, sobrando das alpargatas, o cabelo ralo, o corpo magro e resistente. As mesmas mulheres sem beleza nas faces cansadas.”