Fugas - Viagens

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“As coisas vão acabando, não há nada que dure para sempre”

Por Andreia Marques Pereira

O rebanho sai todos os dias, faça sol ou faça chuva. Estamos em Aveloso, aldeia empoleirada na serra, e parece que parámos no tempo. Vamos percebendo que isso em parte é uma ilusão, em parte é verdade.

Pensávamos que íamos começar cedo, muito cedo. E nove da manhã não é muito cedo. Nem sequer para o Inverno, que já está a correr para a Primavera. Não que se perceba, aqui na serra de Montemuro: a neve já veio e já se foi, mas o vento teima em baixar perigosamente as temperaturas. No dia anterior havíamos visto água congelada numa fonte nas Portas de Montemuro, uma espécie de instalação de gelo com laivos líquidos. Água é o que não falta por estas paragens, sob os nossos pés nasce o rio Bestança, dizem que um dos menos poluídos da Europa, que desagua 13 quilómetros à frente, depois de muito balancear entre os montes, depois de saltar rochas, depois de se abrir em poços. Daqui não vemos mas adivinhamos todo o caminho do Bestança da nascente até à foz, uma nesga de rio Douro no fundo do vale. O rio vive inteiramente em Cinfães, que já foi do Douro, mas parece ter-lhe virado as costas, pelo menos na toponímia. Aveloso, pelo contrário, tem o seu nome inscrito nesta região há séculos. E quando chegamos parece que há quase tantos se mantém igual. Uma ilusão que é também uma verdade. Mas, então, são nove horas em Aveloso e é Inverno.

Quando decidimos acompanhar a saída do rebanho estávamos preparados para madrugar. Mas a vida ajusta-se às estações do ano. São estas que comandam a vida de quem vive no campo, do campo, para o campo. Há coisas que nem a troca das juntas de bois por tractores, do moinho de água comunitário por moinhos eléctricos em cada casa podem mudar. Está marcada a saída do rebanho e de repente estamos rodeados de cabras, ovelhas e cães. Surgem de vários lados, das cortes onde passam a noite, e parece que sabem o que fazer. Começam a juntar-se num pequeno largo ao lado do da igreja, mas quando todos os animais estão reunidos já chegam diante desta. Nós já cá estávamos, com o senhor Abel, pastor empedernido com ar de Lenine suave. Hoje não sai com as vigias — são duas em Aveloso, mas saem juntas — porém vemo-lo bem cedo, foice na mão. Vem de cortar milho para os cabritos e segue para os campos, “botar água”, para preparar a sementeira do feijão. (“Aqui começamos tudo no final de Abril, lá em baixo é antes.”). A água é dividida por horas, explica, cada qual “bota” na sua hora: na altura do milho (a principal cultura nesta aldeia mais propícia à criação de gado — que o milho alimenta) o horário é cumprido escrupulosamente, por estes dias há mais liberdade, faz-se “consoante a área do terreno” — junto da bica da aldeia, há várias caleiras que são abertas e fechadas ao ritmo desta partição da água.

Talvez porque não é altura do milho, o que parecia ser pressa rapidamente passa a conversa — o que parece confirmar o que havíamos ouvido de Emília Viana, artista com casa em Ferreiros dos Tendais: os seus vizinhos têm sempre pressa, porém, ficam meia hora a conversar; e com direito a visita à sua casa, pedra integral, onde tem como vizinhos Santa Ana e São Joaquim, ou não vivesse diante da igreja. Parece a vizinhança apropriada para o senhor Abel: uma cruz recebe-nos, um pequeno quarto transborda de motivos religiosos. Poderíamos pensar que eram herança (ficou com a casa dos pais, onde sempre viveu) se não soubéssemos que todos os dias, ao final da tarde, ouve o terço na rádio (hoje será um relato de futebol a sair pela janela aberta). O pequeno rádio é, aparentemente, aliás, a única peça de tecnologia existente na casa, paredes escuras do fumo, negras na cozinha onde a grande lareira pendura presuntos alheios porque já há poucas lareiras assim na aldeia — e casas assim escuras, perceberemos, “agora é tudo branquinho”, como nos dirão Maria Elisa e Marfida, 82 e 85 anos, a tarde passada junto a outra lareira em cozinha “branquinha”, da cunhada da primeira.

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