Fugas - Viagens

  • Maria João Gala
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Continuação: página 2 de 6

“As coisas vão acabando, não há nada que dure para sempre”

Aveloso terá sido uma aldeia integralmente pétrea até há muito poucos anos, até que os seus homens começaram a emigrar atrás da construção civil e o dinheiro começou a entrar mais abundante. Obras nas casas antigas, uns poucos “prédios” novos, quase todos do mesmo lado da aldeia, o lado oposto àquele a que chega a estrada e um pouco mais encavalitado na serra. A aldeia tem crescido, mesmo que encolha o número de habitantes: na parte nova há casas amarelas, rosa, em tijolo cru, à espera da bonança; na parte antiga, que é Aveloso quase toda, casas de pedra, currais de pedra, ruínas de pedra e ruelas empedradas pejadas de bosta, algumas naturalmente interditas aos carros — para chegar ao lado novo da aldeia de carro há uma rua de terra batida, uma “circunvalação” por cima. Entretanto, alguns homens voltaram; outros voltaram e tornaram a sair; muitos estão cá e lá, com muitas horas de estrada pelo meio. É a mesma história por todo o concelho de Cinfães (e arredores). Há quem esteja na Suíça, Brasil, Togo, nos sítios mais insuspeitos, as mulheres nem sabem bem onde estão; há quem esteja em Espanha, e venha ao fim-de-semana, a meio da semana, sempre que calha — e às vezes Lamego é tão longe quanto o país vizinho: “Já estou habituada [a não ter o pai], mesmo quando trabalhava em Lamego dormia lá”, dirá Diana, nove anos, o pai a sair muitas vezes às duas da manhã para ir trabalhar do outro lado da fronteira.

“O monte não é fácil”

Diana já está na escola (a carrinha vem buscá-la e a dois companheiros “às 8h, 8h15, 8h20...”), quando a dona Dina começa a subir o monte com a vigia. É um pouco redundante dizê-lo: Aveloso fica no monte, numa plataforma aninhada mesmo abaixo do topo que a serra recorta aqui. Vista ao longe parece empoleirada, vista ao perto, das últimas curvas da estrada (que mesmo no topo passa para Castro Daire, o concelho vizinho), parece embutida na paisagem rarefeita. O arvoredo perde-se à medida que se sobe; em Aveloso é quase inexistente, brota aqui e ali nos lameiros que muros de xisto retalham como tapeçaria, e agora está despido, vendo-se quase como um rendilhado. Mas esses terraços como ondas verdes só os descortinamos assim quando estamos a pairar acima de Aveloso, num dos topos, que serão vários, das montanhas rapadas que nos envolvem, rochedos e eólicas.

Trepamos, então, além do casario, além da “dor mole no braço” de dona Dina. Deu um tombo, conta, e só pensa na roupa que tem para lavar, “que a máquina não lava tudo” — não lava, por exemplo, “as calças dos homens quando andam a limpar as cortes”. Não sabe quantos animais leva consigo, sabe que algumas fêmeas estão para parir e por isso têm uma coleira laranja. Andará sempre com um olho nesses e sobressaltada pelas ovelhas — “já não vejo nenhuma”, “são malinhas, malinhas”. Caminhamos pela estrada de terra batida “aberta pelas eólicas” enquanto o gado se dispersa nas bermas. É este que decide o caminho, os seus badalos são espanta-espíritos constantes, melodias quebradas a tempos pelos gritos da pastora, cajado a brandir no ar, “ai burra paneleira”. No início, há quatro anos, após a morte do cunhado, vinha “à toa com os animais”, agora não arrisca, quando está nevoeiro e chuva, vem um dos filhos, Beto, que hoje anda por Sobreda “a cortar silvas”. Preocupa-se quando o céu começa a nublar — no dia seguinte tem de sair com os animais outra vez, hoje está a fazer um dos dois dias que deve ao senhor Júlio. É assim que funcionam as vigias: há rotatividade com as saídas, uma escala feita de acordo com o número de animais que cada proprietário possui — quantos mais, mais vezes sai.

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