Fugas - Viagens

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O meu reino por um livro

- Desculpa interromper – vira-se para a amiga e logo me olha através do retrovisor. Se quiseres parar, para fotografar, só precisas de me dizer. Temos tempo.

O imponente cenário das Brecon Beacons começa a projectar-se com toda a sua força.

- Pois, uma vez franqueada a porta de entrada, nem queria acreditar no que os meus olhos viam – prossegue Charlotte Baston. Mesmo à minha frente, sentado a uma secretária e vestindo um fato de lã, com os seus óculos e cabelo e barba brancos como a neve, estava um homem que se parecia exactamente com aquele que sempre imaginei como sendo o professor que era proprietário da casa onde as crianças ficaram depois de serem evacuadas em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa.

 

Um livro por 120 mil euros

A estrada avança, não raras vezes solitária, e eu recuo, como atraído pela recordação do cheiro dos livros usados, quando me sentei, em Hay, com Patricia Daly, também ela instalada atrás de uma elegante secretária em madeira, desfiando o rosário das suas memórias de menina.

- Cresci rodeada de livros, não em casa, porque a minha família não tinha posses para os adquirir, mas recorria à biblioteca e a minha mãe era, ela própria, uma ávida leitora de tudo quanto pudesse deitar a mão – de tal forma que posso dizer que também cresci rodeada do cheiro a batatas queimadas porque ela as punha ao fogão a cozer, pegava num livro e esquecia-se completamente de que estava a cozinhar.

Patricia Daly levantara-se para atender um cliente mas não tardou a voltar às suas lembranças.

- Um livro que teve um grande impacto na minha infância foi O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, que me foi lido, pela primeira vez, quando eu tinha sete anos. Era algo de mágico, que me transportava para um mundo novo, e eu, ansiosa, nada mais desejava do que o último período do dia, quando o professor o lia para a classe.

Charlotte Baston coloca os óculos na ponta do nariz, como se estivesse a ler a história que ainda não terminou, enquanto Paul Owens permanece num silêncio que faz eco lá fora, nos vales e nos montes com contornos bem definidos.

- Estivemos à conversa, eu e o velhinho, durante um tempo, ele mostrou-me todos os exemplares que tinha em armazém de Alice no País das Maravilhas, uns antigos, outros novos, e de repente, levantando-se, pediu-me para aguardar uns minutos. Dirigiu-se para a sua casa, nas traseiras da loja, e regressou pouco depois, carregando uma enorme caixa de vidro que colocou sobre a secretária. À minha frente tinha uma preciosa e cara segunda edição de Alice no País das Maravilhas que já nessa altura – há 15 anos, portanto – valia cem mil libras (cerca de 120 mil euros ao câmbio actual). Senti-me honrada por observar tamanha raridade e depreendi, pelas suas palavras, que nunca a exibia, com receio de que alguém lha roubasse.

Paul Owens aproveita para parar o carro e convida-me a sair para admirar a imponência das montanhas.

- Durante uns anos, passava com frequência pela loja e ele sempre me reconhecia. Mas há uns dez, quando uma vez mais resolvi entrar para dois dedos de conversa e ver os livros, deparei-me com um jovem no lugar do simpático velhinho de cabelo e barba brancos. Senti-me triste e não tive coragem de fazer perguntas. Nunca mais lá voltei.

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