Fugas - Viagens

O meu reino por um livro

Por Sousa Ribeiro (texto e fotos)

Abrimos as páginas a Hay-on-Wye num passeio por esta pequena vila do condado de Powys. Com apenas 1500 habitantes, recebe todos os anos, em finais de Maio, meio milhão de participantes no Festival Literário.

Há lugares cujas memórias mais vivas estão associadas ao momento da partida, talvez porque de partidas e nunca de chegadas é feita a errância de um viandante.

O carro, um idoso com idade indefinida, dos poucos a circular àquela hora de domingo no asfalto que rasga a paisagem verde e pontuada de ovelhas indolentes, deteve-se mesmo ao meu lado, correspondendo ao meu sinal de polegar ligeiramente inclinado. Do seu interior, emergiram, em simultâneo, duas figuras trajando roupas saídas de meados do século passado, ambos de óculos de aros redondos: ela, com um cabelo loiro que lhe caía pelos ombros e olhos grandes de um verde cheio de vivacidade; ele, com uma cartola preta cobrindo parte do cabelo desgrenhado, uns olhos pequenos e de um castanho mortiço, uma barba grisalha e, na mão esquerda, um cachimbo do qual se erguia uma ténue nuvem de fumo azulado.

Os rostos, emoldurados por sorrisos, e a simpatia que deles emanava, expressa na forma calorosa com que me convidaram a entrar, eram próprios de quem reencontrava na estrada da vida, não um estranho, à boleia, mas um velho companheiro de velhas cadeiras de escola.

Paul Owens afagou a barba e, perscrutando o interior, riu-se das suas próprias palavras:

- Tenta acomodar-te no meio do caos. Estivemos a participar numa peça de teatro para crianças.

Se alimentava a esperança de entrar numa viagem ao passado, conduzido por um casal de amigos que não era deste tempo, as explicações de Paul Owens devolveram-me ao presente.

O carro dá uma ou duas sacudidelas, ameaça não ter futuro, mas, aos soluços, avança sob um sol primaveril.

- Verdade? Vieste de tão longe para ver Hay? 

Charlotte Baston virava-se agora para trás, na minha direcção, entrincheirado entre artefactos como se fosse um nómada arrastado por um teatro ambulante.

- Sempre que passeio por Hay, sinto-me relaxada e revigorada — e excitada quando a ideia de uma visita à vila ocupa os meus pensamentos. Sou uma apaixonada por livros e Hay é um paraíso para mim.

Quanto mais me afastava, geograficamente falando, lançando olhares através da moldura da janela, mais me aproximava, sentimentalmente, de Hay, como carinhosamente é conhecida.

- Queres que te conte uma história? Como acabei de dizer, adoro livros e colecciono mesmo alguns. Há uma loja, fora do centro, solitária e numa rua muito comprida, especializada em literatura infantil. Uma vez, já lá vão mais de 15 anos, decidi parar para dar uma espreitadela, na secreta esperança de encontrar alguma edição de Alice no País das Maravilhas, da qual tenho 76, todas de diferentes ilustradores.

Paul Owens dá uma baforada no cachimbo, o verde à nossa volta é cada vez mais viçoso, rivalizando com o entusiasmo colocado por Charlotte Baston quando evoca a sua recordação.

- Ao mesmo tempo, também andava à procura de um exemplar raro de O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa e aquela loja, na qual nunca antes havia reparado, afigurava-se como o espaço ideal para o encontrar.

Ao volante, Paul Owens vai observando a paisagem e baixa a cartola para proteger os olhos do sol.

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