São sete da tarde de sábado, 30 de Maio, um dia depois da abertura oficial do One World Observatory, a hora de Jake guardar a máquina. A oeste, a luz é quase dourada. Os rios reflectem o cinza do céu. O topo dos edifícios têm cores definidas. Verde, preto, ocre. E depois são duas tarde da segunda-feira seguinte, não há quase ninguém, e no mesmo sítio está a tal parede, branco cerrado em todos os pontos cardeais. Não há imagens iguais na cidade mais filmada do mundo.
Nem memórias. O cinema, a literatura, a televisão, a arte ajudam a fixá-las. Ali, no cimo, ocorre uma passagem de Joseph Anton (D. Quixote, 2012), o livro em que o escritor Salman Rushdie conta a sua vida e a primeira imagem que teve da cidade de Nova Iorque. A década de setenta ia a meio, Rushdie era publicitário e viajava pela América para escrever uma campanha para a U.S. Travel. Levaram-no ao bar Windows of World Trade Center, no cimo de uma das torres gémeas. Seria a sua “primeira e inesquecível imagem da cidade”, escreveu. Anos depois, a 11 de Setembro de 2001, estava outra vez na cidade, escritor famoso perseguido pelo regime de Teerão, e clandestino, assistia na televisão à destruição das torres. O que lhe ocorreu? Aquela primeira imagem.
O desafio
Fixe-se a imagem do conjunto a partir do topo daquele andar em fim de tarde. Orgânica, viva, a cidade desafia permanentemente as certezas de quem a visita e vai traçando circuitos proibidos ou sagrados, na moda ou envelhecidos. Na sua eterna mutação, ela surpreende o nova-iorquino mais conhecedor. Sair, traçar um plano de conhecimento, pressupõe essa sabedoria, a de que aquela cidade — como muitas cidades, mais do que quase todas — irá sempre escapar. E se o plano for amplo ela será capaz de gerar as emoções mais contraditórias.
Tome-se essa perspectiva de cima, abrangente, nova, como ponto de partida para uma viagem que não será nunca como outra qualquer. Estamos na maior cidade dos Estados Unidos e naquela que tem maior diversidade populacional. Com oito milhões e meio de habitantes em 2010, 33,3 % da população era branca, 28,6% hispânica e latina, 25,5% negra e 12,7% asiática. Em 1940, 60 anos antes, a percentagem de brancos era de 93% e o inglês era de longe a língua mais falada. Hoje disputa o primeiro lugar com o espanhol, a segunda língua oficial, mas há português, de Portugal e do Brasil, francês, chinês, japonês… Num cruzamento em hora de ponta de transeuntes o resultado de todos aqueles sons falados, gritados, resulta numa língua imperceptível. Mais uma vez, tudo isso está na arte, na literatura, no cinema, na arquitectura e agora, mais do que nunca, na gastronomia, mas em nenhum lugar como na rua essa diversidade é apreendida. E na rua, em nenhum lugar como no metro, não importa a linha que se tomar. “O metro de Nova Iorque é uma vasta mente desordenada”, escreveu Jonathan Lethem em Chronic City, um romance de 2009 sobre um escritor que tenta captar a essência da cidade.
Anos antes, uma personagem de um dos mais geniais escritores de Nova Iorque, o jornalista Joseph Mitchell, sintetizava, já no início do século XX, o melting pot que foi formando cada vez mais a metrópole onde nada se estranha e que todos parecem conhecer um pouco mesmo sem nunca lá ter estado. Mitchell era um jornalista que andava sobretudo pelo Village e pela Bowery, na baixa de Manhattan, então o centro de uma boémia que desapareceu. Ficou conhecido, entre outros trabalhos, por ter eternizado Joe Gould, um sem-abrigo que deambulava por bares carregando um segredo precioso. Conheceu, no entanto, Eugene Cassell em uptown. “…às vezes vou à cave de uma habitação de três pisos na rua cinquenta e cinco, um bloco a três quarteirões de Columbus Circle, e sento-me em cima de uma múmia egípcia roída pelos ratos e troco impressões com Charles Eugene Cassell, um velho yankee por cuja mente perturbada e amarga tenho muito respeito. O Sr. Cassell tem sangue negro, francês, português e inglês.” É uma das histórias reunidas em Up in the Old City (2008), um volume de crónicas e reportagens que traçam a identidade de Nova Iorque, aquela que a maioria dos nova-iorquinos não quer que se vá, a da multiplicidade, da diversidade social, cultural, económica, cultural, que muitos consideram poder estar ameaçada pelo aumento de custo de vida e consequente fosso entre ricos e pobres.