Fugas - Viagens

Guatemala: No cimo do vulcão e com vista para o vulcão

Por Sousa Ribeiro (texto e fotos)

Activo desde 1965, após um longo período de adormecimento, o Pacaya permite, por vezes mas nem sempre, que se suba ao cume, para que o turista sinta o seu calor e aviste, ao longe, a Cidade da Guatemala, a capital de um país que é uma explosão de cores e um mosaico de contrastes.

A criança, com uma expressão por vezes ausente mas uns olhos vivos como os de um peixe, fartos caracóis que caíam em cacho, fazia-me sempre o mesmo pedido no momento em que, por qualquer motivo ou sem motivo aparente, comigo se cruzava na antecâmara de mais uma viagem.

- Uma pedra, por favor.

Eu não conhecia ninguém que fizesse colecção de pedras.

…Se entró de tarde en el río
La sacó muerta el doctor
Dicén que murió de frio
Yo sé que murió de amor

O vento atormenta a bandeira da Guatemala, deito-lhe um olhar, depois abarco todo o Parque Central e devolvo-o à menina que canta – e encanta – para mim, com um sorriso tão genuíno que me faz pensar que a bondade se desenvolve melhor na pobreza. Identifico o poema primeiro, do cubano José Martí, um mártir na luta cubana pela independência, revolucionário, detido pelos colonizadores espanhóis, condenado a seis anos de trabalhos forçados, deportado para Espanha, morto e mutilado pelos invasores no seu regresso a Cuba, finalmente exibido à população como se de um troféu se tratasse.

Deixo que a niña prossiga e logo depois evoco a história de La niña de Guatemala. 

Quiero, a la sombra de un ala,
Contar este cuento em flor:
La niña de Guatemala,
La que se murió de amor.

A 2 de Abril de 1877, contando apenas 24 anos, José Martí chega à Guatemala, dividindo a sua vida profissional entre os cargos de compositor e de professor na Escuela Normal. Num esfregar de olhos, o poeta torna-se popular entre os intelectuais guatemaltecos e presença habitual das tertúlias. Beneficiando desta conjuntura favorável, começa a frequentar a casa da família García Granados, cujo patriarca, pomposamente conhecido por Don Miguel, era o presidente da República e líder da revolução liberal.

Parece que não estou a falar da Guatemala. Mas estou.

É desta forma, tão natural, que José Martí trava conhecimento com Maria, na puerilidade dos seus 16 anos, virtuosa no piano, bela de feições. Entre os dois, carinho e amizade transformam-se num sentimento ainda mais forte mas José Martí, poeta honesto e homem de causas e de palavra, nunca ocultou a Maria, filha de Don Miguel, o seu compromisso de matrimónio com a cubana Carmen Zayas Bazán, que materializa em finais de 1877, no México.

Agora identifico a música, a guitarra, a voz do também mexicano Óscar Chávez.

…Ella, por volverlo a ver,
Salió a verlo al mirador:
El volvió con su mujer:
Ella se murió de amor.

José Martí havia terminado o seu compromisso laboral na Guatemala, regressa entretanto a Cuba e inteira-se, já no ano seguinte, da morte de Maria, devido a doença respiratória (o frio como causa), que logo, como pode acontecer com um poeta, mas não com um qualquer, transforma em doença de amor, de um amor platónico.

A menina já não canta, fita a toalha que não tardará a tentar vender-me, mas remete-se por agora ao silêncio, como tantas outras mulheres na Guatemala num tempo distinto; olha em volta e em volta eu olho, pensando que todo o país, como um mosaico, cabe aqui, neste pequeno espaço onde nos encontramos, ela e eu: nas suas cores, nos seus sorrisos, no amor, na ausência dele, nos sentimentos, numa vida de provações, em vidas roubadas e em relações turbulentas.

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