O caos na cabeça
Yusuf e Melis já são marido e mulher, mas ainda não sabemos para que lado acordou o dia. É sempre assim, tímida, a cidade, à luz da manhã. Nos quarteirões em volta da Praça Taksim, anda o homem do sésamo a empurrar o seu carrinho vermelho para vender pequenos-almoços, almoços e jantares, ou seja, rodelas de pão com sementes de sésamo para trincar a qualquer hora. Cruza-se com os miúdos das bicicletas e com bolas de futebol, com os cães vadios, os fumadores e os condutores – a espécie mais perigosa de toda a Istambul, pronta a usar a marcha-atrás e o acelerador impulsivo sempre que necessário.
Vamos descer até à água, seja ela do Bósforo, do Corno de Ouro, do mar Negro ou de Mármara. Qualquer uma serve. Mas para chegar lá em baixo é preciso subir primeiro – nada é gratuito por estas bandas. De Taksim a Kasimpasa, há edifícios prontos a desmontar-se sobre o chão, cabos eléctricos que deixam marcas de pó e dióxido de carbono nas paredes, a rua dos electrodomésticos, a das ferramentas, a dos reparadores de barcos. Há o mercado de Kastamonu a transbordar de vermelhos, verdes, roxos, laranjas, todas as cores que os frutos e legumes turcos dão de bandeja, ou melhor, de bancada. Há o estádio com o nome do presidente, Recep Tayyip Erdogan, no último topo da última colina, e daqui será um deslize até ao porto de Kasimpasa – o mais bonito, porque tem um jardim nas costas onde se vende chá e as pessoas assam pernas de frango.
Atravessar o Corno de Ouro neste barco para Haliç custa 2 liras turcas (0,60 euros), e ainda há entre os bancos uma mesa para beber chá preto assim que o sono chame pelo seu nome (çay, diz-se por aqui). O miúdo vai no piso de cima a sentir o vento norte, a mãe come bolachas trazidas num saco. A nova margem significa um mundo de coisas, como a vontade de espreitar as pontes e de farejar Eminönü até à última especiaria. Aqui estão a canela, o anis, o açafrão, as pimentas e os chás de muitas sortes. E na Ponte de Galata estão dezenas de canas de pesca apontadas à água. É aqui que à noite se monta o rebuliço em torno das sandes de peixe, vendidas nos barcos presos ao cais, que mais parecem dragões chineses a ondular com o barulho das gentes. “Toda esta complexidade faz-nos admirar a cultura e dá vontade de nos perdermos. Istambul é esse tipo de lugar, que te engole por inteiro quando começas a descobri-la”, concorda Melis, que pára, por instantes, de fumar cigarros no terraço. “Mas quando vives aqui”, continua, “toda essa beleza mostra-se enganadora”. “Viver em Istambul exige demasiado tempo, dinheiro e esforço, física e psicologicamente.”
Osman (nome fictício) viria a confirmar-nos isso mesmo. Vende frutos secos e lokum (doce típico turco) numa loja feita de lonas, já o sol vai dourado. Perguntamos como corre o trabalho e Osman agarra-se às ancas como quem dá um último sopro de força às pernas. “Como pode correr bem se trabalho 13 horas por dia?” Tem pirâmides de frutos para cobrir e organizar no bazar das especiarias. Diz-nos que ser turco é isto, e quem diz turco também diz sírio, afegão, libanês e as muitas outras nacionalidades que compõem a mancha profunda de Istambul.