Junto à Nova Mesquita (Yeni Cami), há homens a vender pensos rápidos, lenços de papel, pássaros de plástico que cantam como os de verdade. Na lateral, outros homens lavam os pés numa sequência de purificação, junto às 66 cúpulas e semicúpulas que comunicam com o céu, de onde canta o muezzin (o responsável pela chamada para cada reza). Entramos descalços sobre a alcatifa rubi que cobre o mármore da mesquita. Devíamos andar sempre assim, sem sapatos, sem meias, sem relógio, sobre terrenos de algodão que massajam os pés da quilometragem que um lugar como Istambul impõe. (Escrevemos, mais tarde, “quilómetros” e “Istambul” no Google e a soma dá 1 830,92 km². Lisboa tem 100,05. Pois bem. Vamos à população: à nossa volta, haverá 14 milhões de deambulantes, segundo os últimos censos, de 2014. “14 milhões? Nem a brincar! Somos mais de 20 [milhões], à vontade”, dir-nos-á Hilal (nome fictício), um homem reformado, tornado ao país depois de 30 anos na Alemanha.)
É preciso preparar os olhos para a multidão. Deixem-nos ficar na Yeni Cami, a pensar no mundo em volta, a ganhar fôlego para a vida em massa no bazar de Eminönü, antes de comermos o nosso melhor kebab e de provarmos um infantil ayran (o iogurte que é bebida nacional), que nos deixará bigodes até à ponta do nariz. Deixem-nos aqui, a calcular os sacos de café que queremos levar connosco, a pensar nos diferentes tipos de tâmaras à venda e a lembrar as toalhas de mesa que parecem tapetes persas.
Ficamos, pensamos, calculamos, tudo. Mas a reza acabou e os mercados não. Vamos. À porta do Grande Bazar, faz-se fila para comprar café, se bem que aqui a fila é difícil de identificar. Mulheres grandes levam sacos grandes de compras, homens que já não têm idade para isso carregam caixas pesadas às costas, miúdos imberbes empurram carrinhos colinas acima e abaixo. O tempo passa porque há pessoas a comprar tecidos, bules, chávenas, comida e especiarias. As pessoas são o tempo a passar. O bazar são loiças, azulejos, latão, jóias, tapetes, homens à conversa nos corredores, cigarros avulso, becos onde se formaram hotéis com pátios e plantas a crescer com o efeito de estufa. Além das tâmaras, há figos e damascos, e há maçarocas cozidas na rua. Valha-nos Alá neste Estado laico (que não parece), senão vamo-nos a tudo.
Pamuk há-de salvar-nos
No que toca ao caos na estrada e aos passeios cruzados por motorizadas, Istambul parece Marrocos. Mas também parece Lisboa, pelo rio, pelas pontes, pela luz sobre as colinas. Ah!, e tem um pouco de Paris, na zona dos hotéis e das chiquezas. Se bem que podia ser uma cidade do Sul de Itália, em Yenikapi, o bairro onde se come peixe fresco na grelha. Mas também tem Ásia nos letreiros e nas lojas de vestidos de noiva de Üsküdar. Caminhamos cidades inteiras em Istambul. Trilhados os bazares e dadas as voltas tontas ao mesmo bairro, na imaginação de qualquer peregrino, os gémeos já teriam ganho porte de estátuas gregas, definidos, robustos, prontos para enfrentar um exército. Fora isso, a realidade são bolhas nos pés e dedos latejantes. Tudo sobe e não termina. A Atatürk é uma avenida sem horizonte, por exemplo.