“Istambul desfila, com todo o peso do seu caos, com as suas mesquitas, os seus bairros afastados, as suas pontes, os seus minaretes, as suas torres, os seus jardins e os seus altos edifícios cujo número aumenta de dia para dia”, resume, por nós, Pamuk.
Sair sem sair
Para além de Yusuf, o recém-marido, e de Niki, a cadela, Melis havia-nos dito que uma das coisas que mais a acalmavam em Istambul era sair daqui. Riscou-nos no caderno o número de um autocarro que atravessaria a ponte e que nos conduziria até Beykoz, de onde um segundo autocarro nos levaria a Polonezköy, a aldeia polaca no cimo de um lugar de árvores, a partir do qual Istambul é uma miragem em silêncio. Aguardamos pelo número certo na Praça Taksim. Ele não chega. Perguntamos aos homens da rua, questionamos a senhora apática do Posto de Turismo. “Esse autocarro já não existe”, informa a funcionária. Alternativas? Não as adianta.
Vamos lá, então, apanhar o ferry, que vai composto e contente. O senhor do costume, com o seu bigode farto e mãos bojudas, passa de bandeja a oferecer çay, sumo de laranja e aperitivos. O mundo há-de compor-se. Podemos ir até Üskudar e apanhar a vista final sobre a Torre de Leandro, que fica sobre um ilhéu no estreito do Bósforo; ou escolher o porto de Haydarpasa, em Kadiköy, onde mexem o mercado do peixe, o kebab da rua Neset Ömer e os cafés bonitos da primeira linha asiática – não esquecendo a loja de café e frutos secos Brezilya, uma espécie de Brasileira da Turquia, com quase 100 anos e muito para (bem) cheirar.
Depois dos figos e da música na praça, havemos de encontrar transporte para Beykoz. “Quanto custa o bilhete?” “Não vendemos bilhetes para o autocarro. É preciso ter um cartão… Mas quanto dinheiro tem?” “Quatro liras.” “Está bem, pode ser.” Do banco do autocarro, que segue paralelo à costa, Istambul não termina. Há um homem que segue os nossos minutos com os olhos. Vê o que apontamos, o que fotografamos, o que fazemos até Beykoz, esse lugar ainda em Istambul mas que parece uma aldeia montada por pescadores, com tascos para comer barato e turcos conversadores.
Vir de Taksim até aqui levou uma manhã. Já o pequeno-almoço vai longe e o caminho para Polonezköy também – assim que chegámos, disseram-nos que “já não há autocarros para Polonez”. A fome fala primeiro e vem na voz de uma cantina que dá para a praça principal. O homem que nos observava no autocarro, Hilal (nome fictício), também almoça aqui e, assim que nos vê, interrompe o bulgur para estender mais cadeiras à mesa. “Do que precisam? Aqui come-se muito bem, muito bem mesmo. Ao meio-dia, isto enche de advogados. E mais: é barato. Peçam a meia dose, que dá perfeitamente, e ficam a pagar metade.” Hilal é o tal homem que viveu 30 anos na Alemanha – “é por isso que falo inglês” – e que lembra insistentemente que em Istambul vivem mais de 20 milhões de pessoas. “Não estão registadas, mas é verdade.” Comemos bulgur com ele e uma pasta cremosa de beringelas, curgete, tomate, alho e azeite. À sobremesa não resistiremos, já se sabe. Ao café também não. Os funcionários esticam-se para tentar entender o inglês. Às tantas, já não interessa o que dizemos, mas o que comemos. E Polonezköy? “Estão a ver este homem? Ele leva-vos até lá.” Para cá, logo veremos.