E a montanha que é a casa dos espíritos ancestrais também guarda as marcas dos homens que estão de passagem, como os japoneses que cavaram os túneis em Venilale, para guardar armas, durante a II Guerra Mundial.
Entramos nesses túneis e de repente estamos rodeados de crianças timorenses que vão chamando umas pelas outras para verem os malai. Uma delas diz-nos qualquer coisa em tétum, aponta com mão e fala aflita. Percebemos que não devemos entrar num dos túneis, porque pode desabar. Do lado de fora, um porco, que parece uma vaca, dormita ao sol.
Nós seguimos, de volta a Baucau e dali para Díli. Para trás vão ficando os cães escanzelados, as mulheres que lavam a roupa no ribeiro, as crianças que ensaboam as cabeças e os homens que passeiam, uns com galos ao colo, outros com catanas nas mãos.
Ponta Oeste
Loromonu, onde o sol se põe
Estávamos convencidos que depois de tudo o que já tínhamos visto e experienciado, no lado do sol nascente, pouco mais nos poderia surpreender no lado do sol poente, mas não podíamos estar mais enganados.
A viagem de Díli a Balibó é relativamente fácil, há bastantes troços da estrada que estão alcatroados (e, espantem-se, alguns até têm sinais de trânsito!) e o Taci feto (mar mulher) acompanha-nos em grande parte do percurso. Além disso, é possível fazer algumas paragens bem agradáveis, em Liquiçá e Maubara, para petiscar boa comida e fazer compras.
Liquiçá é, aliás, o sítio escolhido por muitos portugueses, e outros estrangeiros a viver em Díli, para passar os fins-de-semana fora da capital, ou para o almoço de domingo. O restaurante Black Rock, mesmo em cima da praia, é um grande atractivo e a vila é muito bonita, com vários edifícios portugueses, incluindo o Hotel Tokede, que, bem recuperado, seria um excelente substituto do Grand Budapest Hotel, no filme de Wes Anderson. Já estamos a ver um grande plano com os locais a atravessar a praia a caminho da missa. O lago de Maubara, uns quilómetros à frente, onde se diz que vivem maus espíritos, também ficaria muito bem nesse filme.
Em frente ao forte de Maubara, onde se pode comer uma boa refeição e relaxar à sombra das enormes árvores, existe um pequeno mercado onde se podem comprar artigos de artesanato, como as almofadas com aplicações de tais e os famosos produtos de cestaria, feitos com a folha da palmeira, que tanto servem para fazer cestos (e espanta-espíritos, chapéus, bijutaria e por aí fora), como para extrair a seiva com que se faz o tua mutin, uma espécie de vinho bastante intragável.
Parece um contra-senso que nestas duas pacatas vilas tenham acontecido batalhas sangrentas em diferentes períodos da História. Em Maubara no século XIX, com a revolta dos reinos contra a governação dos portugueses; e em Liquiçá, uns meses antes do referendo de 30 de Agosto de 1999, para a Independência de Timor-Leste, onde um grupo de milícias indonésias atacou uma igreja e chacinou um número indeterminado de timorenses, sobretudo crianças e idosos.
Silêncio que se vai pôr o sol
De volta à estrada, até Batugadé, que faz fronteira com a Indonésia. Acaba aqui, portanto, o Timor que fala português, ou que quer falar português. Na verdade não acaba completamente, porque do outro lado, a pouco mais de 100 quilómetros da fronteira, encontra-se o enclave de Oecussi, que foi, aliás, onde os portugueses atracaram quando chegaram a esta parte do mundo e que por estes dias se encheu de festa para comemorar os 40 anos da Declaração da Independência e os 500 anos da chegada dos portugueses.