Santo e pecador
A ideia de um palácio real em Posen (nome alemão que a cidade tinha na época e que foi capital da província do estado da Prússia, o maior e mais importante do Império Alemão) nasceu em 1905 com a demolição das antigas muralhas da cidade. A recente realização do Europeu de futebol de 2012, em parceria com a Ucrânia (a selecção de Portugal montou o seu quartel-general num luxuoso hotel precisamente nos arredores de Poznan) levou a um restauro e reconstrução da parte oriental deste centro cultural fortificado. Depois da ocupação da Polónia, em 1939, Hitler transformou-o numa residência oficial, tornando a antiga capela privada num luxuoso escritório de 130 m2 revestido em mármore. O tempo não cessa e com ele foi-se Ivan. O reencontro fica para o serão.
Estou, então, na casa de partida, os cabritos já se chifraram, a plateia debandou para glamorosas esplanadas, enquanto, agora a solo, erro pelo lado poente das ruas Wozna e Mostowa. Procuro embalagem para alcançar Ostrów Tumski, onde tudo começou. A origem da cidade remonta ao século X, quando o duque Mieszko a nomeou como uma das capitais do seu ducado, e, no ano de 968, criou o primeiro bispado com a construção da mais antiga catedral da Polónia. A Ilha da Catedral é um oásis de tranquilidade que se alcança numa jornada prazenteira, sendo visíveis, ao longo do percurso, vários elementos de simbologia cristã. O ingresso no berço da nação faz-se pela ponte Boleslawa Chrobrego, mas, antes de a calcorrear, desprendo-me de fadigas nas margens do rio Warta, onde duas jovens perscrutam o marulhar das águas azuis-petróleo que vigiam a ilha verde como um pai que protege a filha de investidas forasteiras. E tantas foram... Na linha que une o céu à terra, duas torres gémeas barrocas ambicionam tocar uma abóbada celeste agora revestida de azul-cobalto, divorciada de farrapos leitosos que cavalgam num Norte longínquo. O recorte da basílica de São Pedro e São Paulo, popularmente chamada de “A Catedral”, domina o horizonte pela majestade e simbolismo. Pouco antes de a alcançar, detenho-me na igreja gótica da Virgem Maria (Kosciol Najswietzszej Marii Panny), do século XV, cujo subsolo preserva os vestígios daquela que terá sido a primeira sede do estado polaco, e num par de noivos em respeito da solenidade das vestes, decalcando as passeatas dos primeiros membros da dinastia de Piast. A excessiva e espartana catedral, de tijoleira de um fogo desvanecido pela acção do tempo, alberga, além de inúmeras capelas menores com vestígios do românico e barroco, a demandada Capela Dourada, guardiã do mausoléu dos primeiros governantes da Polónia — Mieszko I e Boleslaw I, o Bravo. Já a afundada e claustrofóbica cripta conserva os maciços caixões dos arcebispos que presidiram à catedral ao longo de séculos.
“Venha o Teu espírito descer
e mudar a imagem da terra ... esta terra.”
Omnipresente, Karol Józef Wojtyla, ou Papa João Paulo II, canonizado pela Santa Sé em 2014, está aqui perpetuado em estátua, em frases ou imagens incrustadas nas severas paredes da Catedral. “João Paulo II foi o único Papa eslavo e o primeiro não-italiano desde o holandês Papa Adriano VI, em 1522”, comunica-nos a não menos austera cuidadora do espaço sagrado, de um banco de onde nunca parece ter saído. A figura mais amada da Polónia é creditada por ter desempenhado um papel significativo na queda do comunismo, não só no seu berço como um pouco por toda a Europa Central e de Leste. Milenar, a catedral transformou-se numa espécie de santuário da memória nacional polaca, envolta numa aura santificada, com Karol Wojtyla a dar as boas-vindas.