“Sabias que o Gaspar da Gama é daqui?”, perguntou, prosseguindo, de uma penada, perante o meu silêncio esclarecedor. “Ele foi fundamental no sucesso dos Descobrimentos portugueses, porque sabia falar várias línguas e isso ajudou muito os navegadores do teu país.” De facto, acrescento-lhe, no intuito de derrotar um sérvio no duelo sobre a História de Portugal. “E merecia outra atenção por parte dos meus governantes, porque foi, sem dúvida, o língua, ou tradutor, que mais e maior serviço prestou aos portugueses, mormente a Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral.” Breve parêntesis histórico: Gaspar da Gama é uma figura imprescindível nos tratos marítimos de Portugal. Vivia já há muitos anos na Índia quando se aproximou de Vasco da Gama, passando-se por cristão. Apareceu bem vestido, simpático e insinuante, tanto que, mesmo confessando depois ser judeu, caiu nas boas graças do navegador: baptizado, dele ganhou o seu sobrenome. Gaspar da Gama, ou Gaspar da Índia, desembarcou no Brasil, como conselheiro e intérprete, sendo dos primeiros, ou o primeiro mesmo, a pisar Terras de Vera Cruz.
Mais um prato de pierogi e uma cerveja lech premium de meio litro, medida costumeira numa cidade de superlativos. Distraio-me com as cabeças de fantasia de cabrinhas, amparadas nos lívidos braços das duas jovens louras, que passaram o dia a deixarem-se fotografar em frente à Ratusz. A capital da Grande Polónia combina a expressão cultural da Europa centro-oriental com o racionalismo e a ordem da Europa ocidental. Aqui, história e tradição entrelaçam-se com a modernidade, de atracções turísticas a refúgios idílicos. É uma cidade perfeita para escapadelas românticas, inclusive para um viandante solitário que errou sem destino pelos paralelepípedos de Poznan. No final do primeiro dia, sinto-me pronto a responder à pergunta de abertura.
Parque dos horrores nazis
A manhã do dia seguinte foi inteiramente imersa a norte da Cidade Velha, no Parque Cidadela, medula de uma vasta mancha verde com 100 hectares. A envolvência bucólica não patenteia o que de monstruoso aqui se passou no século passado. A data mais sinistra do lugar remonta a 1939, quando os nazis instalaram um dos primeiros campos de concentração em solo polaco. Hitler, que foi nomeado chanceler pelo alemão Paul von Hindenburg nascido em... Poznan, transformou o Forte Winiary, parte de uma série de dezoito fortalezas defensivas construídas, no século XIX, pelos prussianos, e destruídas em 1945, numa casa de horrores. Os nazis deram aqui início ao uso de gás (sobretudo monóxido de carbono) experimentado em cerca de 400 doentes com perturbações mentais. A baixa e afunilada ala de paredes de tijolo é opressiva para os sentidos, e a luz no fundo do túnel surge como libertadora de um dos mais funestos capítulos da História da Humanidade. No total, estima-se que entre cinco a 20 mil pessoas tenham aqui morrido às mãos criminosas dos nazis. No exterior, o crocitar dos corvos, que esvoaçam por cima da copa das frondosas árvores, e as esculturas originais de Magdalena Abakanowicz completam o cenário sombrio polvilhado de sepulturas. No lado sudoeste da colina, o cemitério dedicado aos militares caídos durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais; enquanto na ala do cemitério da Commonwealth se encontram os restos mortais de dezenas dos famosos aviadores aliados que fugiram do campo de prisioneiros em Zagan, imortalizado no filme The Great Escape (traduzido em português para A Grande Evasão), com Steve McQueen no papel principal, baseado no livro homónimo de Paul Brickhill. E daquele espaço descomunal, de memórias fratricidas, evado-me para o centro da cidade onde irei travar uma batalha de faca e garfo.