Endereços que mudam
A primeira aldeola flutuante, se não se contar Cheong Khneas, o porto de partida: casinhas móveis, flutuantes, com telhados de zinco, uma igrejinha azul, casebres com ar de galinheiros onde mora gente, um edifício governamental todo janota, muitos barcos nas suas fainas de pesca e de transporte de mercadorias deslizando por uma larga avenida de água, crianças brincando nos únicos quintais possíveis, metidas em grandes bacias de alumínio a fazer de barquinhos de brinquedo.
A vida corre toda sobre a água neste mundo de gente anfíbia que muda de endereço quando muda a estação: durante a monção, com a subida das águas, o casario troca de poiso e de configuração, um pouco como acontece com as aldeias flutuantes dos Uros do lago Titicaca, nos Andes. É gente anfíbia e mais aquática do que outra coisa. Vão a terra uma ou outra vez, mas quase tudo se faz de barco. Vai-se às compras de barco, como aos templos, à igreja cristã e azul, a casa dos vizinhos, à escola. Com as suas mochilinhas e as fardas do regulamento, lá vai a petizada toda a remar.
O Tonlé Sap, classificado como Reserva da Biofera desde 1997, é tudo para esta gente. Não é apenas a maior reserva de água doce do Sudeste Asiático; é também uma imensa reserva de pesca, uma das mais fecundas do mundo. Está agora ameaçado pela pressão excessiva das actividades piscatórias – tragicamente o único recurso disponível para as populações das aldeias flutuantes dispersas pelo lago. O governo legisla constrangimentos, reproduzindo as lógicas de conservação habituais entre os sítios classificados como Reserva da Biosfera – mas sem outros programas de compensação eficazes, o ciclo de pobreza tende a agravar-se. Num tão belo cenário, de abundância ameaçada, o que não fica nas imagens digitais dos viajantes em trânsito é o que Wang Jian, um jornalista de Singapura que segue também a bordo do Chann Na, sintetiza no que para ele poderá ser o título adequado para a reportagem que tenciona escrever para um jornal de Singapura: The dark side of the lake.
Miradouro em movimento
Às tantas, a tarde a meio e dissipadas as sete hipotéticas horas de jornada, na previsão mais ilusionista, vai uma parte dos passageiros inconsolável já de demasiada aventura, ou da falta dela, encurralada a expedição numa peganhosa monotonia... Um ramerrão enfadonho – há-de matutar a sonolência de uns quantos, a cabecear com o calor e o balanço –, este de só água e céu a vista alcançar e de os barcos só ao longe se darem a ver, que nem neles os indígenas se distinguem ao estender os braços no arremessar das redes, vagas silhuetas, apenas, em contraste com o clarão da linha do horizonte. Uns dormitam, numa aflição de (não) ver o tempo passar, tão calaceiro, outros recolhem-se, alheados da viagem, em leituras de best-sellers.
A dormência da luz, a humidade tropical e o sono quase fazem perder a transição: de um momento para o outro navegamos outra vez num braço de água, de novo enlameada, furando entre barrancos baixos e caniçais, num lanço a contra-corrente. Subimos agora o rio que vem de Battambang, o Sangkae, um dos muitos cursos de água que alimenta a reserva do Tonlé Sap. O motor da lancha ronca e as margens devolvem-nos um eco cavo e contínuo, belicoso, nada bucólico. É por estas bandas que se aclara a causa do desagrado dos pescadores locais por estas pitorescas jornadas de desocupados estrangeiros: enrolam-se as redes nas hélices intrusas e depois de arrastadas pausas para as libertar, com a barca a sacudir-se em espasmos, para ali ficam, rotas, retalhadas, sob o mirar submisso dos fotogénicos nativos.