Siem Riep, a porta de entrada de Angkor, cresceu na proporção do acréscimo de popularidade da antiga capital khmer e da expansão dos fluxos turísticos para a região. É o principal suporte logístico para os mais de dois milhões de visitantes que Angkor recebe em média por ano e tem, também, os seus próprios atractivos, mesmo se um punhado se confina a um tipo de animação comum noutros lugares – os bares em espaço aberto com música ao vivo de (presumível) agrado dos forasteiros, a comida de rua, as barraquinhas de batidos de fruta tropical a um dólar e, ainda, as sopas vegetarianas da gastronomia khmer e o sempre bem apimentado lak lok, noutros algures mais populares e mais afastados da excitação turística.
Em todo o caso, Siem Reap, para além dos preâmbulos hedonistas que antecipam o mergulho na selva de Angkor, pouco tem para cativar o turismo cultural. Para um complemento da visita à antiga capital khmer, é preciso arriscar uma aventura por um território militarizado, ainda há pouco tempo palco de confrontos entre os exércitos da Tailândia e do Camboja, na província de Preah Vihear, uma região em que os khmers vermelhos resistiram muito para além da queda do regime de Pol Pot, deixando a mortífera herança de campos que ainda hoje permanecem por desminar.
Após longas horas de solavancos, embarcados nas velhas carripanas Tata dos transportes públicos cambojanos, chegamos à fronteira tailandesa e ao templo Preha Vihear, um brilhante exemplo da arquitectura khmer. O Preha Vihear mantém-se objecto de disputa entre o Camboja e a Tailândia, tendo relançado o desentendimento entre os dois países em 2008, o ano da sua classificação como Património Mundial pela UNESCO.
Mas não se ocupa agora a narrativa com essas andanças pelo extremo norte do Camboja. Vai o viajante noutra direcção, a de poente, animado por outras seduções. Viu Angkor, já sem a ingenuidade de António da Madalena – o português que foi o primeiro europeu a meter-se por aquelas selvas –, e agora dá-lhe para ir espreitar o milenário templo de Banam, lá para os lados de Battambang.
Abala de autocarro ou de barco, navegando através do lago Tonlé Sap? Tem de desempatar até ao cair da noite, aconselha o patrão da guesthouse, que se declara pronto para mandar vir o bilhete através de um daqueles esquemas locais, muito propícios, que permitem à hotelaria do Sudeste Asiático facilitar a vida aos viajantes.
O Tonlé Sap desfaz a hesitação com o trunfo de uma proverbial singularidade do ecossistema. Isto ouviu dizer, ou leu em fonte esquecida, o viajante, que pouco mais sabe quando chega a hora de pousar os pés no barco. Vai, enfim, e depois de umas semanas a cismar na viagem, dar uma vista de olhos ao lago. Consigo leva um pdf da UNESCO para se inteirar do assunto ao longo da navegação – assim como quem se prepara com um romance policial para um cruzeiro de luxo.
Au revoir, dear Mr. Ho
Mal amanhece, ainda com as primeiras cantorias da passarada, somos recolhidos por um tuk-tuk à porta da Oral d'Angkor Guest House. Sanae Kondo, uma japonesa de Okinawa que se prepara também para a aventura da jornada aquática pelo Tonlé Sap, pousa a mochila no veículo e faz um aceno de despedida a Mr. Ho-Chi-Minh, como ela gosta de se referir ao anfitrião da guesthouse, com quem se entretinha às vezes a falar em "franglês", mesclando o seu ágil inglês com um francês muito assim-assim. Mr. Ho, circunspecto e venerável na sua barbicha prateada, pontiaguda, olhos miúdos e expressão pensativa, acaba de cumprir as suas orações matinais à beira de um incensário budista, num canto do pátio, a dois metros da mesa de bilhar.