Para um vago apaziguamento desta rudeza de cenário precisaremos de atingir, mais adiante, trechos abertos para o horizonte, onde panoramas mais desafogados nos darão a ver a faina dos camponeses, os campos amanhados para a sementeira do arroz, o labor de crianças e mulheres curvadas sobre a terra. Diante do barco – um espantoso miradouro em movimento – vai desfilando nas margens o casario repousado em estacas, construções em palafita tão comuns nestes sítios quanto as casas flutuantes que deixamos para trás, no lago: pobres e altivas, parecem elas próprias acenar-nos com tanta hospitalidade como os seus inquilinos, especados nas margens com canas de pesca, grandes bacias, enxadas ou um chapéu de palha nas mãos.
Um rio que corre às avessas
À volta do lago, o ecossistema inclui pântanos, terras aráveis, planícies que durante uma parte do ano se cobrem de plantações de arroz. Consoante a época, o cenário varia significativamente. A monção carrega os afluentes de água que fazem crescer o tamanho do lago. Mas há outro fenómeno hidrológico a pesar no aumento da área do Tonlé Sap para cerca de cinco vezes mais. Como o Mekong não consegue escoar, na zona do delta, o caudal inchado pela monção, ocorre um fenómeno de inversão da corrente no rio Tonlé Sap, um afluente homónimo que o liga ao lago. As águas excedentárias acabam por retornar, obrigando o Tonlé Sap a correr às avessas e a contribuir para a ampliação exponencial do lago que sobrevém durante a monção. Desse rio, e das torrentes que avolumam o Mekong, já Camões nos dava conta no Canto X de Os Lusíadas, ao referir-se ao grande curso de água que atravessa a região: “Vês, passa por Camboja Mecom rio, / Que capitão das águas se interpreta; / Tantas recebe d’outro só no Estio, / Que alaga os campos largos e inquieta…”.
Tudo isto, versos à parte, se pode ler no tal pdf da UNESCO, razoavelmente minucioso e graficamente brilhante. Os números não são, todavia, eloquentes para (mais do que entender) sentir a imensidão oceânica deste pedaço do Camboja e a fragilidade da vida de quem come diariamente o pão que o diabo amassou mas porfia em ser fiel a esta singular pátria aquática.
Anoitece quando nos aproximamos de Battambang, após umas extenuantes dez horas de navegação. O cenário, mal iluminado pelo lusco-fusco, mostra as margens do rio Sangkae cobertas de palmeiras, enquanto uma neblina rasa desliza sobre o rio, onde a petizada anda chapinhando com grande alarido. Noutros rios, como no curso do Mekong através do Laos e do leste do Camboja, é a mesma coisa: o fim da tarde, hora de mais brando calor, é um tempo de reinação para a miudagem.
Ao desembarcar descobri que a lancha em que viajou Sanae chegou mais cedo – não foram tantos os percalços com as redes dos pescadores. Ela espera-me no cais de Battambang e é já noite cerrada quando nos despedimos de Wang. Um tuk-tuk deixa-nos à porta da Shangai Guesthouse e fica combinado que, no dia seguinte de manhã, Prak, o condutor, nos levará até ao templo de Banan, nos arredores da cidade. Mas só após um pequeno-almoço cambojano a tomar no velho mercado de traço arquitectónico colonial. Não podia imaginar, naturalmente, mas seria aí que travaria conhecimento com Achariya, uma cambojana descendente dos portugueses que se instalaram no país no final do século XVI e que acabaram por se tornar conselheiros e ministros do rei – e, mesmo, por fazer parte da família real.