O desencantado Gao Xingjian não encontrou na sua Ghanzou sinal algum do lago em que costumava pescar, afundado agora por edifícios submetidos à acupunctura electrónica de milhares e milhares de antenas de televisão, não encontrou a casa da infância, o pátio onde o avô se sentava a falar do tigre que havia avistado numa véspera já distante, quando ainda era jovem (“Avô, tiveste medo quando encontraste o tigre?”. “Não é de tigres que eu tenho medo, tenho medo é dos homens maus”) e onde havia uma parede gravada com as palavras “boa ventura”, “longevidade” e “alegria”, por cima da qual observava com juvenil curiosidade a vizinha Zaowa, moça de olhos muito redondos. Podia ter acontecido noutra cidade, não necessariamente em Ganzhou, podia ter acontecido noutro lugar onde as rugas urbanas são pouco amadas e sucumbem, sem eufemismos melífluos, à enfermidade da especulação imobiliária que a vertigem do progresso sempre traz no ventre e acelera a ruína de velharias “inúteis”.
O personagem de Gao caminha comigo neste pedaço de Kunming, baloiça nas páginas de um livro guardado na mochila, avança nostálgico, inquieto, pressentindo a toada silente e agónica das velhas casas bordadas em madeira, mas alentado, ainda, por um exangue resquício de ilusão: “… os homens não são cruéis ao ponto de quererem destruir tudo sem deixarem como vestígio uma parede coberta de caracteres gravados, a natureza humana é má, a maldade é mais forte do que a bondade, disseram-no os santos, os sábios e os filósofos de todas as épocas e de todos os países, mas tu inclinas-te ainda para a bondade do coração humano, uma vez saciados os homens não podem espezinhar as tuas recordações de infância, porque também eles podem ter tido uma infância que merece ser recordada…”.
Estou agora parado numa esquina, a observar as barracas de comércio de rua, as bancas confusas que misturam brinquedos de plástico, discos compactos acondicionados em capas transparentes, maços de pauzinhos de incenso, enfeites vermelhos intercessores de sorte destinados a serem suspensos nas casas, pacotes redondos de chá do Yunnan e, no meio de tudo, um homem embrulhado em fumarada a assar maçarocas e batata-doce. Estou parado na esquina e um velho aproxima-se de mim; circunspecto, os olhos meio encobertos pela finíssima fresta das pálpebras, estende-me as mãos: vejo uma tigelinha com uns frutos secos lá no fundo e um olhar penetrante num rosto impassível. Talvez se chame Gao, também, e se tenha escapado das páginas do livro que trago na mochila. Talvez seja alguém que tenha tido, também, na sua velha Kunming, uma infância que merece ser recordada.
Kunming acredita em flores
Uma razoável surpresa aguarda os viajantes – especialmente os atarantados pelas vertigens urbanas de outras metrópoles chinesas. Em Kunming, distanciados dos concebíveis problemas de tráfego de um meio urbano desta dimensão, vemo-nos imersos num centro estruturado com áreas recatadas do bulício automóvel, pequenos jardins um pouco por toda a parte, árvores e pequenas florestas de sombra ao longo dos passeios, arquitectura e zonas comerciais arejadas e modernas. Além, claro, dos mercados de rua, habitantes de artérias mais estreitas e refractárias a geometrias de catequese, frequentados por pequenas multidões com ar de que nenhuma pressa lhes toma os passos. Não andamos nós, os viajantes, e parece não andar, em boa verdade, esta gentil gente descontraída, em busca da casa da infância, como o personagem sem nome do conto de Gao Xingjian.