Arcos, pagodes e arranha-céus
De regresso às zonas pedonais da Dongfeng Lu e da Zhengyi Lu, que se intersectam numa grande praça cingida por centros comerciais e adereçada com um chinesíssimo pórtico, sentimos no ar os odores da comida de rua que vêm esvoaçando das ruelas mais chegadas. Os aromas e as receitas ajudam também ao retrato da multiculturalidade e da pluralidade étnica do Yunnan – 25 grupos minoritários, totalizando um terço da população. Para paladares convencionais ou conservadores, há ali por perto restaurantes com comida previsível, incluindo as cada vez mais ubíquas cadeias de fast food internacionais – e, hèlás, as nacionais, como a Dico’s, um sucesso confuciano-capitalista que já conta com mais de dois mil estabelecimentos em território chinês e que projecta chegar aos dez mil lá para o ano 2030.
Um pouco à maneira de Cartier-Bresson, uma miscelânea de instantâneos, de imagens que, por mais pitorescas, não valem as mil palavras do enganoso aforismo: música a jorrar de um leitor de mp3 pendurado a tiracolo de um velhote de boné à Mao, um pequeno grupo de mulheres a dançar, atentíssimas aos passos, os massagistas cegos, de bata branca, alinhados à sombra das árvores da Zhengyi Lu, a deitar mãos às maleitas dos pacientes, a pequenada em passeio de domingo (todos os dias da semana) entretida com canas de pesca de brinquedo e a vigiar o movimento dos peixes de um laguinho - nada a sério como na infância do personagem de Gao, mais tanque do que lago, paciência, tudo muda -, o mercado nocturno de Kundu, sempre animado, com as suas lojas de panóplia “étnica”, restaurantes populares onde se come bem, mesmo sem indícios de chefs, e bares à espera da maré alta de jovens, notas e notas de jovial consumismo por todos os lados (quão longe se está dos espartilhos e interdições da Revolução Cultural e dos resquícios medievais da primeira metade do século XX), marcas globais, apátridas, afixadas em grandes cartazes de moderníssimo e eficaz design, os pagodes de Dongsi e Xisi, ambos com treze andares bem contados para seduzir a fortuna, tabuleiros nas montras das pastelarias, recheados de portuguese egg tarts, os dàn tà, pastéis de nata com sotaque chinês…
Ao início da noite, quando as iluminações um tanto feéricas dos arranha-céus modelam o cenário à moda de um parque de diversões, com uma infinidade de luzinhas de néon a catrapiscar em arco-íris, misturamo-nos com a multidão que gravita à roda das bancas de comida de rua ao lado da Jinbi Lu e dos esplêndidos arcos que se expõem como símbolo histórico da cidade de Kunming. O nosso Frei Gaspar da Cruz anotou flagrantes fidelidades estéticas sustentadas no estruturante conservadorismo confuciano e cuidou de alentar com minúcia a sua narrativa de viagem pela China: "Em todas as ruas das cidades nobres, que são ruas reais ou principais, há, mui sumptuosos e muitos, arcos triunfais (...). São estes arcos, nestas cidades nobres, além de sumptuosos, mui galantes e mui bem obrados...". Neste agora, que é o da jornada contemporânea no século em que a economia chinesa se tornou a segunda do planeta, e em que os turistas do país de Confúcio redescobrem, aos milhões, o que os anos loucos da Revolução Cultural sublimaram (e visaram reduzir a pó), não há que esperar por particulares celebrações ou datas insignes. Tal como Li-Mei - companheira de viagem desde a antiga capital do Laos e guia nestas andanças pela sua cidade - me havia antecipado minutos antes, uma engenhosa luminária lança claridade sobre a elegância que deixou Gaspar da Cruz encantado. Os arcos - escreveu o viajante quinhentista - levam por cima "mui galante edifício de madeira: é coberto por cima com telha mui galante de porcelana, a qual lhe dá muita graça e formosura".