O centro histórico, classificado como Património da Humanidade pela Unesco em 1988, é “como um museu a céu aberto”, repetirá Mercedes vezes sem conta ao longo da visita guiada. “Há monumentos em todo o lado.” Uns de fachada minuciosamente trabalhada, outros mais simples. Em estilo românico, gótico, renascentista ou barroco. Foram quase todos construídos com o arenito cinzento da região, que os séculos oxidaram num amarelo-alaranjado, como se o tempo quisesse acentuar a sépia o perfil antigo e aprimorado de Salamanca. O tom torrado – omnipresente e, por isso, tão harmonioso – dá-lhe o epíteto de “cidade dourada”. Um dos orgulhos de encher o peito aos locais. E até o letreiro do McDonalds, vermelho em todo o mundo, pinta-se aqui de amarelo reluzente.
É na Plaza Mayor que nos sentimos pela primeira vez verdadeiramente mergulhados neste postal monocromático – ainda assim mais para o banho de areia do que de ouro. A praça, habitualmente coração da vida social, está parcialmente encerrada e Mercedes olha descontente para o cenário. Ao centro, começa a erguer-se uma feira do livro e a parafernália de estruturas dilui o impacto visual dos edifícios barrocos, rouba-lhes protagonismo e panorâmica, encostando as vistas a uma margem de esplanadas em redor das arcadas. A praça tem o traçado da primogénita em Madrid, mas aqui as fachadas são mais trabalhadas, a pedra esculpida em adornos sucessivos. E, claro, tão áurea quanto o sol no deserto. Uma e outra – e as gentes das duas cidades – disputam numa rivalidade eterna a insígnia da mais bonita.
Nas ruas, o passado vibra de turistas e grupos de jovens. De dia, num frenesim entre monumentos e dependências universitárias. De noite, num périplo descontraído pelos bares e restaurantes que pululam o centro. Como não tem grande indústria onde assentar economias, Salamanca vive sobretudo do ensino e do turismo. Com isso, o museu sacode os ares pretéritos, o ambiente é cheio de vida, descontraído e multicultural. À cidade, chegam cerca de 70 mil estudantes por ano, “metade espanhóis, metade estrangeiros”. Com eles, mais de um milhão de turistas.
A universidade pública de Salamanca é um dos principais ex-libris da cidade, atraindo de uns e de outros. É uma das mais antigas da Europa. Consoante as interpretações, há quem a coloque no pódio ancião, atrás de Bolonha e de Oxford, e quem a deixe em quarto lugar, somando a de Paris. Há até quem reclame ter sido mesmo a primeira a receber o título exacto de universidade, por bula papal de Alexandre IV. Disputas à parte, certo é que foi fundada oficialmente em 1218 e que funcionou durante 200 anos na catedral velha, até o edifício onde agora nos encontramos ter sido construído. A esta juntou-se em 1940 a Universidade Pontifícia, que ocupa o maior complexo arquitectónico da cidade, La Clerenzia, outrora colégio de jesuítas. E, no Verão, a região afamada por falar “o castelhano mais puro” troca os cursos anuais pelos estudos da língua. Nunca param de chegar estudantes.
Em frente à porta do edifício histórico da universidade – transformado em museu no século XX –, há, no entanto, mais câmaras e mapas em punho que cadernos e canetas. Na fachada plateresca (estilo semelhante ao manuelino português), uma rã esconde-se entre o intrincado escultórico para se fazer superstição. Reza a lenda que quem conseguir encontrá-la sem precisar de ajuda concluirá o curso com sucesso – ou terá boa sorte, que isto da superstição tem de se adaptar aos tempos para sobreviver. E, por isso, são grupos e grupos de turistas que vemos de cabeça erguida e olhos de falcão a perscrutar o bom fado. Mas a velocidade das visitas guiadas é inimiga da fortuna e logo os lasers vermelhos dos guias encontram o sapo-Wally.