A um suspiro segue-se um murmúrio mas este último tem a particularidade de me despertar para a realidade, como a dinâmica de Elsa Laula Renberg terá despertado os sámi para a inércia em que navegavam na alvorada de um novo século.
É Verão e, ao contrário desse tempo de lembranças tão gratas, manchando o meu ser de luz e o quotidiano de escuridão, tenho agora a possibilidade de percorrer novos trilhos, sempre tão envoltos na quietude, que me levam a novas descobertas e me conduzem a uma existência mais rica. Desta vez aproveito para, após uma curta viagem de autocarro até Hjemmeluft, visitar o admirável museu de arte rupestre, caminhando por passadiços que revelam a todo o momento um conjunto de pinturas que atestam da existência de actividade humana já em tempos pré-históricos (entre 4200 e 500 anos a.C.), razão pela qual a UNESCO integrou todo o conjunto na lista de Património Mundial. A panorâmica sobre o fiorde, as enormes extensões de terra à volta, a luz mágica, a harmonia da paisagem, tudo por aqui assume outra dimensão e obriga, com frequência, a desviar o olhar das pinturas e gravuras que retratam cenas da vida de pescadores e caçadores.
Regresso a Alta, o sol é um disco que não me larga, suspenso no céu como uma bola atirada por algum menino, a luz inunda tudo à minha volta, faz-me renunciar ao combate para adormecer. Desisto. Saio para a varanda e vejo a cidade à minha frente, silenciosa, fantasmagórica, por ela caminho distraído e mesmo ausente, lembrando os dias tão diferentes, que é como quem diz essas noites em que os céus eram telas sobre as quais corriam cores pinceladas por pintores e não esse fenómeno místico que em tempos remotos era visto como um prenúncio de um castigo, um recordatório do dever de cumprir as leis, um presságio de pestes e guerras mas que, para os sámi, nada mais significava do que uma saudação das almas dos seus antepassados ou simplesmente virgens dançando nos céus — prefiro esta visão sobre a aurora boreal.
Capital cultural
Em Karasjok, uma neblina sem expressão tornava menos puro o azul do céu. É na capital dos sámi, com tanto espaço órfão de construções, que, quatro vezes por ano, os autóctones se reúnem no Parlamento; chegam de todos os lados do país, muitos mesmo têm as suas vidas em Oslo e só nestes dias se vestem como se veste um sámi porque em todos os outros, que são muito mais, trajam como o mais comum dos cidadãos noruegueses, como alguém que, de repente, depois de tanta luta, tendo esquecido todo o trajecto de uma mulher como Elsa Laula Renberg, renuncia ou pelo menos deixa de reinvidincar as suas origens.
São educados como noruegueses, nas paredes das suas casas colocam fotos de Jesus e, provavelmente quando olham para a imagem de Cristo, não raras vezes ao lado de um rei que não faleceu assim há tanto tempo, até pensam que o melhor mesmo é silenciar o joik, esse canto tradicional, de uma beleza rara; até final dos anos 1970, a língua sámi foi proibida e entoar essas canções é, para os mais velhos pelo menos, como que um pecado que se comete, uma desobediência face ao poder instalado, uma outra vertente de colonização, mais subtil, que até a tecnologia, sem se dar conta, exacerba: como se pode escrever em sámi quando todos os teclados dos computadores estão apenas preparados para escrever em norueguês?