Fugas - Viagens

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Em Odessa, rir ainda é o melhor remédio

Quando ele, vestido de palhaço, com o seu fato vermelho, se senta ao meu lado, com o porto como cenário de fundo, lembro-me do rosto angelical de Galina Sokolovskaya, professora de música num instituto e pintora de matrioscas nos seus tempos livres.

- Há dez anos era um grande acontecimento. Agora, com a guerra no leste do país, as pessoas encontram poucos motivos para festejar.

Georgyi Deliev não partilha da mesma opinião.

- Olhe à volta, percorra a cidade e vai ver que encontra milhares a celebrar. Mesmo que as festividades possam ser mal vistas face à situação no país, é importante dar continuidade ao Humorina, para que as pessoas tenham um motivo para rir e para se divertirem. O humor pode salvar o mundo, assegura Georgyi Deliev, um homem que promove novos talentos e que é, desde a sua abertura, em 2003, o director do teatro Casa dos Palhaços, palco, todos os anos, por esta altura, do Comediada, um concurso de palhaços — os mesmos que agora andam por ali à nossa volta. 

A tarde avança, rodeio a estátua de Catarina que domina a praça Katerynynska, bordejada de casas coloridas, erro pela Gogolya, a rua com alguns dos mais belos edifícios da cidade, onde também viveu Nikolai Gogol, no número 11, até que transponho o portão que me conduz aos jardins da cidade, onde a vida parece ainda mais irrequieta do que em qualquer outro lugar. Há tendas de comida e de bebida por todo o lado, belas fachadas em redor, toda uma expressão de felicidade que também se reflecte nos rostos das pessoas. Bebo uma cerveja, peço carne de um churrasco arménio e afasto-me, por momentos, até uma soberba arcada, a Passazh, com as suas lojas e o mais bem preservado exemplo do estilo arquitectónico neo-renascentista que foi introduzido em Odessa nos últimos anos do século XIX, com interiores repletos de figuras que representam deuses, leões, ninfas e duendes. À saída, faço uma pausa para admirar as pessoas que gostam de se fotografar numa antiga cabina telefónica e, também muito perto, numa cadeira de bronze, fora do perímetro do parque, na Derybasivska. É a 12.ª cadeira, a estrela de um romance satírico chamado As doze cadeiras, dos autores soviéticos Ilf e Petrov.

O carrinho do bebé

A música e os sons festivos continuavam a ecoar por todo o lado. Por instantes decidi abstrair-me um pouco do clima reinante para contemplar Odessa numa perspectiva mais serena. Olhando as gruas amarelas projectadas contra o céu sempre azul, fitava o porto, o mais importante do país no mar do Norte e verdadeira janela para a Ásia e a Europa. Aos meus pés, na sua tonalidade cinzenta, a escadaria Potemkin, desenhada pelo arquitecto italiano Franz Boffo e concluída em 1841, convidava-me a descer mas não sem antes a apreciar nos seus mais pequenos detalhes para perceber até que ponto, vista do topo, criava uma ilusão óptica — sim, os últimos dos 192 degraus parecem, de facto, mais largos. Volto a encará-la, agora de baixo, e não encontro qualquer diferença, todas as escadas têm a mesma dimensão. Para o regresso, utilizo o funicular e imagino que a janela é um ecrã de televisão ou a tela de uma sala de cinema que passa neste preciso momento o Couraçado Potemkin, filme escrito e realizado em 1925 por Sergei Eisenstein. E revejo, com clareza, a população em fuga, as armas apontadas às costas, os corpos caindo sobre o granito, a mulher com o seu véu, o bebé esfregando o olho esquerdo e, finalmente, a cena do carrinho (que tantas outras inspirou) onde está deitado rolando escada abaixo como um eléctrico sobre carris.

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