Fugas - Viagens

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Em Odessa, rir ainda é o melhor remédio

Por Sousa Ribeiro

A despeito da guerra com a Rússia no leste do país, Odessa permanece como a capital do hedonismo e do humor, com um festival no início de Abril que agita ruas onde o cosmopolitismo convive com uma arquitectura neoclássica, onde a vida só faz verdadeiramente sentido por entre uma piada.

Há viagens que começam muito antes. Esta é uma delas. Como uma refeição ou um livro que se vai apreciando com pausas que se eternizam para adiar tanto quanto possível o final.

Como um conto de Isaac Babel, esse filho de Odessa, de um vendedor de roupas usadas e de uma judia moldava.

“Um velho em Odessa pode comer sopa seja do que for, desde que tenha louro, alho e pimenta. A sopa do racionamento não tinha nada disto.”

A noite já tombara sobre Lviv quando, sob uma luz moribunda, me embrenhei por um fosso fronteiriço ao antigo arsenal da cidade, esteticamente a mais bela do país e berço da luta contra os diversos ocupantes; de um lado, uma parede que o tempo foi alisando, do outro, pequenas tendas de comida, algumas delas com bancos rústicos de madeira à volta das mesas. Olhei uma vez mais em redor: não havia um lugar vago. A menos de dois metros de distância, um casal, ele já calvo, ela com um cabelo loiro curto e coberto de madeixas, um e outro com olhares meigos, fizeram-me sinal para me sentar. Ele falava inglês, ela, inicialmente, limitava-se a sorrir. Convidaram-me para beber um vinho quente e pediram mais carne que ia grelhando sobre o carvão enquanto o fumo se elevava no céu escurecido.

- Come, disse ele, estás na Ucrânia, és nosso convidado.

Finalmente, dirigindo-se ao marido, ela pronunciou mais do que duas palavras e ficou à espera que aquele traduzisse.

- A minha mulher diz que és parecido com o Toto Cutogno.

Um ano mais tarde, enquanto recordava as horas divertidas passadas na companhia de Vitaly Polozenko e da sua mulher, Irina, dispus-me a ouvir o cantor italiano que escutara, por influência do meu pai, na minha adolescência, ao mesmo tempo que via passar a paisagem da Transnístria pela janela que também servia de moldura para um céu azul. “Il mio treno va... e va/dentro al mio vagone/pieno di sogni”.

A música, em contraste com a panorâmica com sinais de decadência, triste e com algo de fantasmagórico, transmitia um sentimento de alegria.

Ao início de uma tarde radiosa, mal o comboio proveniente de Chisinau, capital da Moldova, emite um derradeiro suspiro, caminho ao longo do cais e levanto a cabeça para o imponente edifício da estação ferroviária: uma cidade com uma arquitectura assim, com traços tão elegantes, tem tudo para ser uma grande cidade.

De costas voltadas para a Rússia, os nacionalistas ucranianos — mas não todos os ucranianos — reagem com palavras e expressões impublicáveis sempre que se faz uma menção ao inimigo e mesmo com indiferença quando se evoca o nome de Catarina, a Grande. Mas à imperatriz devem, na verdade, tudo o que Odessa, a mais multicultural das urbes do país, representa nos dias de hoje — se Catarina não tem adquirido, na parte final do século XVIII, estas terras que se estendem entre os cossacos e a Crimeia, abrindo as portas do mar Negro à população de São Petersburgo; se ela não tem enviado o seu amante Grygory Potemkin, mais uma procissão de estrangeiros encarregados de civilizar e povoar este território de ninguém, Odessa não seria, certamente, a capital do humor e do hedonismo, duas das suas principais referências.

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