É uma cozinha de “sensatez e sabedoria” e “não de disfarce”, como se lê no prólogo da Cocina Gallega de Álvaro Cunqueiro e Araceli Filgueira Iglesias (1982). É uma cozinha de mães e avós “com fórmulas muito equilibradas para manter o sabor natural dos produtos”.
A nova cozinha galega desenvolveu-se a partir desta matriz e não renuncia a ela. É o que nos diz Marta Fernandez, directora do Centro Superior de Hostelería de Galicia (CSHG). “A gastronomia galega é produto. Temos produtos de grande qualidade. Nos últimos anos, tivemos mais de 300 produtos DOP ou de denominação geográfica protegida.” Mas “queremos recuperar a cozinha tradicional”, afirma.
Momentos antes, encontráramos Maria, uma estudante de 20 anos, a apresentar o projecto semestral ao professor, rodeada pelos colegas, como se fosse um chef a explicar o que iria ser servido ao jantar. Durante uma semana é isso mesmo que farão, abertos ao público e tudo; uma semana para mostrar o que aprenderam em dois anos. Decidiram apostar naquilo que a Galiza tem em abundância — mexilhões, vitela, algas —, mas também nas memórias de infância, com passeios pelo bosque (gelado de eucalipto apanhado há dias). “A sobremesa parece uma paisagem galega.” Nas costas da sua t-shirt lemos: “A cozinha como ligação entre a natureza e o ser humano”.
Entramos no centro histórico de Santiago de Compostela pela porta onde entrariam os peregrinos vindos da rota portuguesa, a Porta Faxeira. A nossa peregrinação, contudo, não é religiosa nem espiritual.
Encaminham-nos para a Rua do Franco (francos eram os homens livres que atravessavam os Pirenéus, explicam-nos). Passamos pelo Boteco — onde antes havia o moinho público. Ainda lá está a mó, enorme. Mas agora o trigo que aqui entra é já em forma de pão, para acompanhar os petiscos. Duas portas ao lado, A Barrola anuncia: “Temos Lampreia” — é onde os reis vêm comer quando visitam Santiago. A lampreia é tão característica desta zona como no lado português (será que a rota da lampreia, que aqui também se organiza, não poderia diluir a fronteira e tornar-se ibérica?).
Vemos por todo o lado montras com os queijos tetilla (com uma forma cónica, como um seio, daí o nome). O tetilla é um queijo de vaca que recebeu certificado DOP, tal como o queijo San Simón da Costa (uma das variedades mais antigas da região), o Arzúa-Ulloa e o Cebreiro.
A nossa peregrinação também nos leva à catedral, onde um casal americano e o filho adolescente acabaram de chegar. O miúdo filma e narra o acontecimento: “E aqui estamos, finalmente, em frente à catedral...” Estão precisamente junto à marca de concha no chão que assinala a confluência das seis rotas que culminam em Santiago (há uma sétima, a de Finisterra, só de partida, e não de chegada). Fizeram mais de 300 quilómetros a pé desde Astorga (na província de Leão) e a mãe está visivelmente emocionada, agora querem encontrar o hotel.
Uma das explicações para a concha é que servia de prova de que se tinha chegado a Santiago de Compostela, uma vez que só aqui havia vieiras, trazidas da Finisterra (Fisterra em galego).