Encontrei este vestido num apartamento abandonado em 1993. A sua cor viva jogava com o proibido, porque nós, como cidadãos da Sarajevo cercada, éramos alvos constantes para os snippers (...). E enquanto as pessoas, temendo pelas suas próprias vidas, se vestiam de cores pardas, desbotadas, eu usava este vestido azul claro, vivo. Era um símbolo de desafio e da minha vontade de viver.
Havemos de chegar ao museu, mas o eléctrico 3 ainda agora começou o seu percurso de todos os dias. O primeiro checkpoint da memória, em qualquer regresso à cidade por este lado, é sempre o novo edifício do jornal Oslobodjenje (Sloboda é liberdade, nome de jornal, deu também um nome próprio muito desapropriado a Milosevic), um moderno prédio de negócios, no lugar onde antes se equilibrava de pé, durante bem mais do que uma década depois do cerco, aquele que era o ex-líbris de entrada na cidade — a ruína do jornal que nunca se deixou arruinar durante a guerra, continuou sempre a sair, porque continuar era sobreviver. Um jovem mochileiro recém-chegado que viaja ao meu lado nem sequer dá por isso, nem poderia, o que tem afinal de turisticamente belo um gigante espelhado, com o Hotel Randon Plaza e o cheiro do McDonald’s quase a entrar pelas janelas do Oslobodjenje, naquele lugar onde estava antes uma ruína que quase, quase todos quiseram apagar? É sempre muito minoritária a ideia de defesa de um património simbólico destruído e, em boa parte, tem sentido. Faz mal lembrar tudo a toda a hora, e continuar continuando.
O turista segue atento ao GPS do telefone que o há-de guiar até ao seu hostel — será ao Franz Ferdinand? — assim que o 3 acostar na Ponte Latina. Ainda falta muito, digo-lhe, e penso comigo: deves ter um quarto de século de vida. Não, tu não te lembras, e ainda bem.
Welcome to Sarajevo!
O eléctrico chia ao travar no Hotel Bristol, a seguir vem o antigo Holiday Inn, agora apenas Holiday, sempre amarelo forte. Mantém-se ali o logótipo das Olímpiadas do Inverno de 1984, para os mais velhos, a última chama de uma felicidade perdida. Nas costas desta fila de prédios, já se prescuta o Miljacka, pequeno rio de grande alma, que não passaria quase da categoria de riacho, não escorresse ele por esta cidade e pela sua literatura, agigantando-se como os outros dois grandes clássicos de água da região, o Drina de Ivo Andric e o Danúbio de Magris e de tantos outros. Quando chove, as águas lamacentas jorram acastanhadas do anfiteatro de montanhas que abraça a cidade, geografia tão bela quanto estranguladora há 25 anos. Mas quando não chove, a água transparente do Miljacka — e como é saborosa a água nesta cidade — dá-nos uma paz contemplativa, a paz possível, como aquela que Ahmet Sabo, personagem principal de A Fortaleza de Mesa Selimovic, encontra depois de regressar a Sarajevo, no século XVIII, raro sobrevivente de uma guerra longínqua.
... Podia contemplar a água tranquilamente, sem pensar. Tudo fluía com suavidade, num murmúrio. Tudo estava em paz: o pensamento, a memória, a própria vida. Sentia-me descontraído, quase feliz. Fiquei horas a olhar para a água límpida, deixando que as suas densas ôndulas me banhassem a mão, como carícias.